CAPÍTULO I

“ Já que a forma do homem compreende tudo que está nos céus em cima e na terra embaixo, Deus a escolheu como sua própria forma. Nada podia existir antes da geração da forma humana, que contém todas as coisas. E tudo que existe é pela graça da existência da forma humana.”

                                                                                                                                     Zhoar- O Livro do Esplendor

 

Quando Adão, Adama, o homem feito do barro vermelho da terra, misturado com o sangue dos deuses, se levantou daquela mesa de operação, ainda meio tonto pela anestesia, que no livro que registra esse primeiro alvorecer da vida humana sobre a terra foi descrito como um molde de  barro, Ele não sabia quem era nem onde estava. Toda a farta pelugem que antes lhe cobria o corpo simiesco havia desaparecido e no lugar dela só restava alguns tufos no peito, nas axilas e no púbis, E a sua aparência, que antes se confundia com uma espécie de símio que andava ereto pelas florestas da região, havia sido completamente modificada, porque agora ele se parecia com um ser de bela aparência, cuja pele irradiava uma luz de cor azulada que envolvia o seu corpo como uma cápsula.

Foi então que ele se viu cercado por outros seres luminosos, iguais a ele, e eles disseram, numa língua que ele logo entendeu, E isso lhe bateu como outra surpresa, por que antes ele não articulava nenhuma palavra, mas apenas grunhidos,  “Eis que temos agora um ser feito à nossa imagem e semelhança, com quem poderemos nos comunicar e povoar este planeta.”

Destarte, Adão foi criado a partir de um espécime animal que eles, os seres angélicos chamados elohins, escolheram entre as várias espécies de primatas que haviam se desenvolvido no planeta. Sua criação foi planejada para atender à uma necessidade que o Senhor   o supremo rei de todos os deuses― conhecido como Jeová por nós, os ocidentais, como Brhaman pelos hindus, Rá pelos antigos egípcios, Anú pelos pela mais antiga civilização da terra, os sumérios, E muitos outros nomes, que segundo se diz, chega a dez bilhões, mas que gosta mesmo é de ser chamado de Deus. Tudo isso ele fez porque precisava ter aqui no nosso pequenino planeta uma criatura que com com ele pudesse se comunicar, em todos os sentidos que um ser supremo pode querer.

É que ele, Deus, antes de fazer o mundo, era uma incógnita, uma existência negativa perdida nas solitudes cósmicas. Ele, por ser completamente ignorado, pode-se dizer que não existia, E isso o incomodava muito, porque mesmo sendo Deus, há coisas que limita qualquer majestade e mitiga seu poder, E uma delas, talvez a maior entre todas, é a indiferença. Daí se dizer que dói mais a indiferença que o anonimato, pois a quem não sabe que algo existe se perdoa, mas a quem sabe e conscientemente ignora, não se poupa julgamento nem penalidades.

Mas no caso de Deus o problema, em princípio, era de anonimato mesmo. Como o mundo ainda não existia ninguém sabia quem era ele.  Ele era uma criatura ignorada e só. Então ele quis tornar-se conhecido e resolveu fazer o mundo. Mas o mundo, por si só, sem uma consciência que dele tomasse conhecimento, de pouco adiantaria para o seu propósito de se tornar uma existência positivada. Estrelas, planetas, terra, fogo, água, ar, e mesmo todas as coisas vivas, como árvores e animais, que ele fez no exercício da sua potência criadora, não mitigaram a sua imensa solidão, Pois elas não tinham com ele a relação simbiótica que se estabelece de alma a alma e faz com que alguém se sinta parte de alguma coisa. E foi por isso que ele fez o homem, E esta, segundo está escrito, foi a mais elaborada das suas obras.

Destarte, o homem foi feito justamente com essa finalidade, ou seja, a de ser a consciência de Deus na terra. Através da consciência humana Deus se apresentaria ao mundo real como uma presença positiva e atuante, E dessa forma manifesta a sua existência, que de outra maneira não seria conhecida.

Agora, claro que Deus é Deus e tudo pode fazer, mesmo usando os métodos mais bizarros que se possa imaginar, como aquele pelo qual os relatos canônicos nos fizeram crer que a criação começou. Pois eles nos dizem que ela começou assim, com um passe de mágica feito por um prestidigitador que pega um boneco de barro, sopra na sua boca, ou no seu ouvido, Ou, como quer que seja que essa mágica tenha sido feita, porque dela imediatamente levantou-se um homem perfeitinho, todo pimpão, como se estivesse saindo de um daqueles desenhos animados onde um pedaço de pau vira um coelho, um coelho vira um pássaro, um pássaro vira homem e assim por diante.

Mas quem de fato leva a sério essa narrativa talvez não lido nas entrelinhas que as crônicas oficiais nos oferecem. Pois de pronto se nota que Adão, tido como o pai da humanidade, na verdade, não o foi, Até porque, como a própria crônica informa, antes dele já havia na terra criaturas semelhantes ao homem tal qual possamos imaginar que ele tenha sido nesses primevos dias.

Isso é o que se infere pelo episódio envolvendo o seu amaldiçoado filho Cain, que sendo expulso da presença de Deus, encontrou em terras a nascente do Éden uma esposa, E, presumimos nós, uma civilização já bastante avançada segundo informam as fontes mais antigas, que dizem, foi quem forneceu a inspiração dos autores do enredo desse conto da criação que foi oficializado.

Do que se narra nessa história que se tornou a fonte de todas as nossas crenças, consta que Adão levantou-se do seu molde de barro, limpo, prontinho, com uma pele lisa e bonito como um anjo, como de fato se informou, que ele foi feito à imagem e semelhança dos seus angélicos pais elohins. E podemos imaginar como teria sido a cara que ele fez ao se levantar e ver a si mesmo como um ser tão diferente daquele de onde proveio. Isso dizemos por que de outras fontes não tão canônicas como às que foram tidas como autênticas, temos informação que na verdade ele foi obtido a partir de uma operação bem menos taumatúrgica do que aquela que o referendado conto da criação fala, Pois que, na verdade, segundo essas fontes, o que Deus fez para criar Adão foi uma operação de mutação genética que ele e seus companheiros elohins fizeram em uma espécie de símio já bastante avançado em sua evolução biológica. Misturando os genes desse, que os acadêmicos chamam de homus erectus, que ainda podia ser considerado um animal, com os genes de um arcanjo da classe dos elohins, obteve-se como resultado o que se chamou de homo sapiens.

 

Tudo pode ser. Afinal, não precisamos ver em Deus um mistagogo no exercício da sua profissão de ilusionista, transformando bonecos de barro em pessoas humanas. Isso faziam os mestres cabalistas com seus goléns, mas de Deus podemos esperar coisas mais elaboradas e críveis do que passes de mágica. Por vias bem mais processuais, lógicas e verossímeis, que hoje até mesmo os homens já podem imitar, ele bem que podia exercer suas habilidades de engenheiro genético e fazer uma operação dessas sem provocar nenhuma perplexidade. E temos para nós que foi isso que ele fez, O  que justifica todas as teorias que se levantaram a respeito desse ainda espesso mistério que é a origem do homem e a sua evolução, até transformar-se nesse caniço pensante que ele é, como o definiu um renomado filósofo.

Que antes de sermos o que somos já fomos algo diferente parece que está provado pelas pesquisas acadêmicas que dão conta de muitas etapas anteriores na saga do homem sobre a terra. Não temos necessidade de crer numa narrativa mais do que nas outras, Mas causa-nos espécie que o protótipo do homem representado pelo Adão que nos foi apresentado tivesse nascido em um determinado lugar do planeta e não em outro, E que certo grupo humano tenha sido escolhido para evoluir e outros não, de forma que até hoje ainda encontramos em muitos lugares da terra pessoas tão inocentes e sem conhecimento do bem e do mal como se diz que era o casal humano antes do propalado episódio que ocasionou a queda do homem em razão da comilança  do tal fruto do conhecimento do bem e do mal.

Sem dúvida fica mais fácil para a nossa cabeça ver o nosso papai Adão levantando-se, ainda tonto pela anestesia, de uma mesa de cirurgia, rodeado pelos elohins que fizeram a operação e os outros que apenas assistem, que diga-se a bem da verdade, era ainda experimental. Disso sabemos porque o próprio registro que dá conta dessas peripécias diz que os elohins, ao confabularem para fazer a dita operação, disseram: “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança”, assim mesmo, no plural, o que mostra que tal operação não foi realizada por uma pessoa só, se é que podemos chamar Deus, ou os nossos angélicos amigos elohins de pessoa. Por outro lado, não se pode considerar como uma falha gramatical do redator desse episódio, que por suposto teria usado uma duplicidade de pronomes na sua redação, tomando por plural o que devia ser singular e coisas tais, por que no mesmo registro vamos encontrar Deus dizendo coisas tais como “Eis que o homem se tornou um de nós”, o que faz supor que ele não estava só nessa empreitada. E a não ser que se compute a Deus a tolice de falar sozinho, que é coisa de doidos, e isso não se pode dizer dele, o que fica dessa informação é que o homem, seja qual for a forma pela qual foi feito, não é obra de uma entidade só, E com isso também pode-se dizer, para pôr mais molho nessa salada, que se o homus erectus é um produto da evolução, o homus sapiens, por sua vez, pode ser uma criação dos deuses. E assim resolvemos de vez essa dúvida medonha que o tal de Darwin colocou nas nossas cabeças com a sua herética tese. Fica aqui registrada a nossa contribuição para a solução dessa polêmica e deixamos também, desde já, liberado para domínio público o uso dessa fórmula para qualquer debate que se trave sobre esse assunto, E nem fazemos questão de sermos citados como fonte.

 Ademais, segundo o que se informa desse nosso pretenso primeiro ancestral é que ele deveria constituir algo diferente do que já havia na terra entre os seres viventes, que nem nomes para identificá-los tinha ainda, tanto que o Senhor lhe delegou a tarefa de nomeá-los para que eles pudessem ser distinguidos uns dos outros. Que o homem Adão era um protótipo, sabemos porque a própria informação canônica desse fato nos dá conta que ele era uma cópia única, que não tinha semelhança com nada que havia na terra, nem usufruía da prerrogativa dada por Deus aos outros seres viventes, que era o fato de serem macho e fêmea, com organismos propícios para se unirem e produzirem crias à sua imagem e semelhança.

Segundo se infere das mesmas fontes que deram geração às narrativas tidas como oficiais, Adão, Adama, o homem da terra, não foi o primeiro dos protótipos que deu origem à espécie humana. Como já se deixou informação a respeito, havia já, por volta dessa época em que o Senhor, acompanhado dos seus elohins, fez nascer o homem Adão, uma respeitável civilização ocupando as terras a nascente do Éden, E essa civilização, ao que consta, tinha sido trazida de algures por seres que não eram oriundos deste planeta. A criação de Adão, no caso, foi a resposta de Deus a essa civilização, que não era do seu agrado e nem o reconhecia como ser supremo.

 

Agora, ao que parece, Adão foi criado andrógeno. Isso se infere pela informação que consta das crônicas oficiais, que dão conta de que todas as espécies criadas tinham a sua cara metade, menos ele. O que quer dizer que todo macho tinha uma fêmea com quem podia se acasalar, o que não deve ter sido uma descoberta agradável para o recém criado ser humano, que via todos os animais procriando suas crias com prazer e ele só olhando. Não se pode colocar essa, que poderíamos chamar de falha genética no protótipo elaborado pelo Senhor, por conta de um erro de projeto, porquanto estamos falando de Deus e ele é infenso a erros. Diríamos que talvez ele tenha esquecido do próprio estatuto que o levou a querer construir o universo da matéria, para que nela ele pudesse espelhar a sua majestade. Esse estatuto, como sabemos, era a necessária existência de dois polos contrários para que a energia da sua imensurável potência pudesse circular e gerar as realidades universais, Pois que foi em razão dessa necessidade que ele fez o mundo: Ele, que era uma existência negativa, criou o mundo para ter uma existência positiva, que se pode traduzir por um reino para ter sobre o que reinar.

E agora, ao ver o homem que se levanta da  mesa de operações, ainda tonto e perplexo com a nova aparência que lhe foi dada, ele nota que o seu protótipo não tem um polo pelo qual possa manifestar a sua própria energia criativa, E dela ele precisaria para cumprir o propósito para o qual foi criado. Dessa forma, pensou Deus, como faria ele para crescer e multiplicar-se, enchendo a terra de criaturas solícitas e tementes a ele, como era seu desejo que fosse? Daí que Deus percebeu, diríamos, não a falha, mas a omissão desse que era um detalhe essencial na composição dessa obra, que diga-se, seria o corolário de todo o seu trabalho na terra, porque, segundo consta, depois de terminada essa operação, que ele achou do seu agrado, simplesmente resolveu dar a si mesmo um descanso.

Mas para Adão, que acabava de despertar do seu anestésico sono, podemos imaginar o que isso significava. Uma fêmea para acasalar era algo que ele não tinha e por conta disso podemos entrar na sua pele para vê-lo perguntando a Deus, ou as elohins que fizeram dele uma alma vivente: "Senhor, Senhores, porque só eu não tenho uma companheira em quem possa depositar minha semente e gerar criaturas à minha imagem e semelhança?” E ele, ou eles, percebendo que, de fato, haviam omitido esse detalhe de especial relevância, Pois que, vendo que todos os animais estavam se acasalando e produzindo as suas crias e o homem não, ficaram com pena dele e resolveram então fazer-lhe uma fêmea para servir-lhe de adjutório para esses fins de procriação.

Que não me queiram mal as feministas por causa dessa palavra feia que foi usada para se referir à mulher, qual seja, adjutório, que parece relega-la a um papel de mera coadjuvante no processo criativo, pois que ela não é da nossa lavra, mas é exatamente assim que se fala nas crônicas oficiais e nós estamos apenas reproduzindo o que foi escrito.

E assim, na visão que nos orienta, foi feita a mulher, por um processo semelhante ao que foi desenvolvido para gerar o homem Adão, Só que, ao invés de misturar o barro da terra ― aqui entendido como sendo um símio em estado mais avançado de evolução genética, algo como os tais homus erectus, ou homens de Neandertal, que os acadêmicos dizem ter sido os nossos ancestrais― o que os elohins, comandados por Deus, fizeram, foi retirar uma célula da costela de Adão, manipulá-la genéticamente e enxertá-la no bucho de uma fêmea neandertalense, para ter, como resultado, uma mulher para servir de polo para a corrente da vida que se inoculava em Adão. Fica por conta do leitor a colagem dos rótulos nas duas criaturas que assim se formam, se negativo um, se positivo outro, o que de resto pouco importa, pois que numa corrente de energia o que importa é a existência de ambos para que a força da corrente se manifeste em toda sua potencialidade.

 

Resta ainda a dúvida de como se criaram essas duas criaturas assim produzidas, pois mesmo considerando-se que ambas foram obras de Deus e Deus tudo pode, não devemos, por foros de seriedade intelectual, computar ao Senhor truques de mágica, o que seria se ele já tivesse tirado dessas operações duas criaturas já adultas, maduras e prontas para dar início à família humana. E já que estamos dando a ele a chance de desvestir-se dessa capa de mistagogo que os cânones oficiais lhe deram, vamos por na sua conta que ele os criou como filhos que eram, naquele jardim que ele plantou no Oriente, na cabeceira de um rio que se dividia em quatro correntes, duas das quais eram o Tigre e o Eufrates, o que nos dá uma ligeira orientação do lugar onde esse jardim ficava.

E ele os criou na inocência de crianças postas num convento onde nenhuma notícia daqueles desejos que conhecemos como vícios entravam para conspurcar-lhes a pureza da alma que se lhes havia inoculada quando se levantaram, guapos e resplandecentes da mesa de cirurgia.  Não entraremos nos detalhes da vida adolescente e da juventude do casal porquanto nessas calendas antigas o tempo não se conta pelas nossas medidas. Mas é de se supor, se dermos crédito às crônicas oficiais que atribuem aos homens daqueles tempos centenas de anos de vida, que alguns lustros centenários devam ter passado até que Adão e Eva tenham chegado à maturidade, já que o dia chegou em que Deus lhes disse “Eis que o homem deve unir-se à sua mulher e ser como uma só carne e o homem deixará seu pai e sua mãe para unir-se à sua mulher”.  

Daí se infere que Adão e Eva foram para a cama, que devem ter armado com folhas embaixo de uma árvore, e praticaram o seu primeiro coito sem meias nem peias, como as duas criaturas inocentes que eram, sem se dar conta do conteúdo emocional que a esse ato viria ser chumbado depois.

Vamos que vamos nessa toada porquanto na narrativa desse conto encontraremos também a informação de que Deus, ou os elohins que fizeram essa proeza, descansou, ou descansaram depois dessa operação e após esse trabalho de criação dos filhos assim produzidos. Afinal, ele, ou eles, bem que mereciam esse descanso depois desse estressante exercício de engenharia genética e pedagogia educacional, que todos nós sabemos, não é brincadeira. E então, como está escrito, Deus, que agora sabemos chamar-se Jeová, porque depois de fazer o mundo e o homem ele se tornou conhecido pelos seus atributos e deu-se ao direito  de ter também um nome, disse ao homem e à sua mulher para cultivar e cuidar daquele belo jardim que ele e seus companheiros elohins haviam plantado no oriente, naquele lugar que se chamava Éden. O que de pronto nos força a pensar que o homem não fora feito somente para servir como sua consciência na terra, mas também para ser uma espécie de servo, ou caseiro― como quer que se possa chamar alguém que cuida de um pomar para outra pessoa― de Deus. E nesse sentido, depois de ter feito e criado o homem ele pode descansar, como está dito que ele fez. E depois se confirma tudo isso com a informação de que ele costumava passear naquele jardim, em direção ao por do sol, o que nos dá bem a ideia de que Deus e seus companheiros também não desprezavam o saudável costume de fazer um happy hour depois do trabalho como qualquer mortal que, afinal, eles não eram.