Os bichos
Perdi o celular na queda... estou fazendo algumas anotações na caderneta... ela estava no bolso... é leve... não foi expelida como o celular.
Estou fazendo anotações para o caso de morrer antes de me encontrarem... embora não tenha abandonado a esperança de ser resgatado pelas patrulhas de busca. Temos um sistema avançado aqui. Amanhã ou depois, talvez. Se nada acontecer neste sentido, espero que achem pelo menos a caderneta.
Foi rápida a aqueda da aeronave, um avião de pequeno porte, para 11 passageiros. Só eu sobrevivi, com arranhões por todo o corpo... talvez uma fratura no tornozelo... talvez, não, porque ele agora começa a inchar. Inchar e doer. Deve ter quebrado. Dói bastante. Para me deixar com mais medo nesta selva escura e úmida... ainda que seja meio-dia mais ou menos (perdi o relógio também), não consigo encontrar um olho de sol, por menor que seja.
Ouço barulhos estranhos, ruídos desconhecidos, que jamais imaginei. Também pássaros aqui e ali.
O avião perdeu velocidade e caiu sobre a copa das árvores, se arrastando em cima delas por algum tempo como um bicho agonizante, deslizando, até mergulhar na floresta profunda. Como aquele voo da... o MD830... alguns acreditam que ele mergulhou de bico no oceano, depois se apaziguando serenamente lá embaixo, nos abismos das profundezas desconhecidas.
Não faço ideia do que teria ocasionado a queda. Talvez um problema nos motores, quem sabe.
Ouvi alguns gemidos... que logo cessaram. Estavam todos mortos. Talvez existissem sobreviventes silenciosos, desfalecidos, mas eu não ia esperar para ver. Saí rapidamente, tanto quanto pude, deixando atrás rastros de sangue.
A aeronave explodiu em seguida, quando eu já estava a uma distância segura. Todos mortos, seguramente. Agora carbonizados.
Bebo água das poças, água da chuva, e procuro raízes para comer. Enquanto isso, ouço rugidos lá longe, de algum bicho sentindo meu cheiro talvez, cheiro de carne humana.
É provável que sejam 7 ou 8 horas da noite. A escuridão é quase completa. Meu medo aumenta. Mas consegui subir numa árvore, a muito custo, pois o tronco é quase liso e não há galhos na parte baixa.
Sinto o bicho se aproximando, é provável que seja um só, ouço seus rugidos aterradores, sinto um gelo na barriga.
Amanheceu. Não fui capaz de fechar os olhos. Os rugidos do bicho não me deixam em paz. Parece que ele quer me torturar, ameaçando avançar e recuando depois, em seguida avançando de novo e recuando, numa brincadeira besta, completamente sem graça. Uma brincadeira infernal. Talvez seja um tigre. É provável que seja uma onça. Ou não. Sei lá. Uma assombração. Entidade indígena. Estou delirando já. Só pode.
Estou quebrado. Mas preciso continuar andando, agora, de manhã, buscando um sinal da civilização, um sinalzinho qualquer, uma pista que alguém tenha deixado, um caminho mais ou menos aberto na mata espessa... ou alguma outra coisa... e não encontro nada. E o bicho... ou os bichos... sim, os bichos talvez, parecem próximos, bem atrás de mim agora.
Estou apavorado!
Subi novamente numa árvore, bem acima do chão, talvez ele não consiga vir aqui.
Tenho medo. Muito medo. Estou tremendo. Perdoem certos rabiscos ininteligíveis devido a minha tremedeira. É culpa do bicho. Dos bichos. Parece que vou cagar nas calças. É quase certo que vou cagar nas calças se não fizer algo, já, já!
Ponho a caneta no bolso da camisa e prendo a caderneta entre os dentes. Abaixo a calça e a cueca e solto tudo daqui de cima mesmo. Plof. Lá embaixo! Não há com o que me limpar, a não ser…
Apanho 2 folhas da caderneta e faço o que posso. O serviço não é perfeito, mas é o que há no momento.
Os rugidos parecem mais próximos. O medo aumenta. É terrível. Estou perdido! Logo, logo, o bicho, uma onça, ou jaguatiricas, vão chegar aí embaixo e estarei fuzilado!
Calma, cara, tenha calma. É preciso muita calma nessas horas. Posso continuar aqui em cima por algum tempo.
Um pássaro muito bonito, todo colorido, se aproxima, avançando habilmente as patinhas sobre o galho. Mas ele parte em seguida, depressa, sem pensar duas vezes. Não é bobo. Se ficasse muito tempo aqui, eu poderia arrancar suas penas, uma a uma, estraçalhando-o em seguida com os dentes. Raízes nojentas... pouco alimentam...talvez eu não tenha comido o suficiente. Enquanto isso, como se eu tivesse me descuidado por uns momentos, os rugidos parecem muito, muito próximos, quase ao pé da árvore. O bicho vem vindo. Está chegando. Quase posso ver. Mais um pouco e...
Meu Deus. Ele tá vindo. Ou ela. Tá vindo... Chegando!
Nossa Senhora. É um tigre! E grande. Muito grande. Não... espera. Peraí! Me Deus! É uma onça! E grande. Muito grande mesmo!
Quase cago nas calças de novo. Talvez ela não possa subir aqui em cima. É a minha esperança. Pai do céu! Tô perdido! Me sinto mau, muito mau mesmo. Aliás, ao escrever esta palavrinha, “mau”, imagino que possa me enquadrar... de algum modo.
“Mau”.
Nessas horas o passado surge como uma bola de neve, as recordações vão crescendo e sufocando a gente. É triste. Muito triste. E trágico também. É claro. Muito trágico mesmo.
É preciso confessar. Fui um cara mau. Mau e nojento, porque, naquela época, não me passava pela cabeça pedir desculpas a quem quer que fosse, a alguém que se sentisse prejudicado por atos irresponsáveis de minha parte. Geralmente eram atos maldosos mesmo. Criminosos?
Ui... meu tornozelo dói cada vez mais.
Um cara mau. Vou dar um exemplo. Um dia atropelei e matei o cachorro do vizinho. Matei por gosto. Senti prazer naquilo. Porque eu não gostava do vizinho. A cabeça do bicho ficou esmagada sobre o asfalto. Nem é preciso dizer que era outra a cabeça que eu imaginava esmagada.
O problema é o seguinte. Eu não me dava bem com o vizinho. Havia discussões entre nós, por coisinhas bobas, insignificantes. Quanto ao cachorro, já o havia chutado algumas vezes, aquilo era um animal asqueroso... tanto quanto seu dono. Ele vivia latindo em meus calcanhares... cheguei a pensar que o vizinho o açulava contra mim... aliás, acho que é isso. O filho da mãe aguardava minha chegada... por trás do muro... instigando o cachorro a me atacar. Quem não se irrita com esse tipo de coisa?
Eu estava de saco cheio pelo modo como era tratado pela vizinhança. Mas passaram a me respeitar um pouco mais após o “incidente” com o cão. Sabiam que eu havia feito aquilo de propósito. Então julgaram, acertadamente, que estavam lidando com um sujeito hostil.
O filho do vizinho foi internado às pressas devido à perda do seu animal de estimação; eu sabia que o garoto era bastante apegado ao cachorro. Sabia e assim mesmo matei o bicho.
Aconteceu que o menino era, por natureza, muito fraquinho, de constituição frágil, aquele tipo de criança mimada que os pais levam correndo ao pediatra ao primeiro espirro. Aí ele adquiriu doenças mais sérias no hospital, doenças infecciosas, que evoluíram para um quadro grave. E morreu. Infecção hospitalar.
Ao saber da morte da criança, poucos dias depois, minha consciência ficou pesada por algum tempo. Apenas por algum tempo. Porque logo compreendi que coisas ruins vivem acontecendo, independentemente de nossa vontade. Veja agora minha situação... esse bicho aí embaixo... rugindo o tempo todo...
Uma fatalidade: o cãozinho havia avançado sob as rodas do carro, o garoto foi para o hospital e morreu.
É verdade que eu poderia ter evitado aquele atropelamento... se usasse o freio no momento certo. Mas um pequeno rancor foge ao nosso controle às vezes, se transforma em algo letal. Meu ódio ao vizinho, naquela fração de segundo, ganhou vida própria e foi superior à minha vontade, se transformando em fúria incontrolável, poderosa o suficiente para causar uma tragédia.
A propósito, para que tudo fique muito claro em relação à minha estupidez certa época da vida, darei agora outro exemplo.
Foi uma briga, de madrugada, após a saída de um clube de dança. O cara me havia provocado com olhares insinuantes para cima de minha garota e, quando se está bêbado, não há muito que fazer.
Chutamos o pau da barraca e ele perdeu. Depois de levar muita pancada, o sujeito caiu e permaneceu imóvel, sem sentidos... eu sabia que, se chutasse com violência as costas dele, iria prejudicá-lo seriamente. Mas a intenção era justamente aquela.
Nem pensei duas vezes, mandei chutes a torto e direito pra cima do pobre diabo. E ele se tornou tetraplégico. De sadio trabalhador que era, passou a um cadeirante inútil, incapacitado pra qualquer tipo de trabalho.
Você tem ideia de quanto posso estar sofrendo agora nos galhos de uma árvore? Com uma onça no meu rabo e este maldito tornozelo inchado?
Você imagina quanto sofre um tetraplégico? Pelo menos enquanto ele não se acostuma com a coisa? Não se adapta à nova realidade?
Já vi pessoas se arrastarem devido a problemas de locomoção, mas é diferente. Um tetraplégico é incapaz de mover a maioria dos músculos do corpo.
Sem ajuda de alguém, a esposa, um parente, enfermeiro etc, ele praticamente não faz nada. Precisa abrir a boca a espaços regulares pra lhe darem comida, mastigar devagar ou mais rápido, dependendo, o tempo todo, da paciência ou do nervosismo do cuidador.
Banho sozinho, nem pensar. Após o cocô, alguém tem de limpá-lo. É horrível... humilhante. É a impotência diante dessas situações rotineiras, íntimas e delicadas, que arruína tudo, traz muita angústia ao sujeito.
Tomei conhecimento, posteriormente, das confidências que o infeliz havia feito a um amigo. Hoje, imagino como a vida havia se tornado amarga para aquele pobre coitado, pelo menos nos primeiros meses, nos primeiros tempos de cadeirante. Seus piores momentos aconteciam ao ter que se deixar limpar pela mãe no vaso sanitário. Um cara acostumado a aprontar, sair por aí, correr e se divertir o tempo todo, trabalhar diariamente... de repente inutilizado e incapaz de se limpar sozinho.
Tô com muito medo. Perdoem meus erros ortográficos.
Passemos a outro episódio. Certa vez mijei dentro de uma igreja. Havia tomado um porre e entrei lá, como se aquilo fosse uma latrina de rodoviárias emporcalhadas. Naquele instante, fui dominado por um prazer lúgubre, doentio, ao profanar, através de um ato sujo, a catedral suntuosa, repleta da gravidade das estátuas circunspectas e de arquitetura elegante... como se todo aquele luxo existisse apenas para servir aos meus desejos.
Esse é um pequeno apanhado do meu triste passado.
Agora, porém, irei falar um pouco da vizinhança. Da minha antiga vizinhança. Também eles tiveram sua parcela de culpa no meu modo de agir. Aí você irá dizer que estou reclamando à toa, que cada um é responsável por seus próprios atos etc... Mas primeiro ouça o que tenho a dizer.
Meu Deus… os rugidos... o bicho aí embaixo… ele não tá pra brincadeira… ou serão os rugidos D’Ele que tenho ouvido?
Você já ouviu falar na Lei do Retorno?
As pessoas acreditavam que era fácil conseguir o que se queria naquela época, vencer na vida e tal. Obviamente alguns haviam conseguido, os sortudos. E diziam que desocupados devem carpir terrenos.
Para mim, foi um tempo difícil, ruim de se conseguir trabalho. Muitos não entendiam, acreditavam que eu era um vagabundo – o que ia envenenando meus relacionamentos.
Não fiz o que fiz, na verdade, só porque zombavam de mim; mas se tivessem ficado quietinhos em seu canto, sem me aborrecer, muita coisa teria deixado de acontecer. Alguns até riam com desprezo, xingavam de longe, autoritários, sobranceiros. Talvez me confundissem com um assassino, traficante, sei lá... basta ser um pouquinho diferente para que surjam teorias estapafúrdias sobre o sujeito.
Eu nem dava pelota; deixava que eles pensassem o que quisessem a meu respeito. Não me preocupava até certo ponto, é claro. Fingia indiferença ao passar por eles, mostrando desinteresse, queria parecer forte, superior. Porque às vezes nos vemos fortes, mas... de repente tudo desaba; somos frágeis na realidade. Nossa fortaleza é um tanto ilusória – para não dizer inexistente.
Já ouviu sobre a Lei do Retorno?
Tô cansado, com fome, sono... serei uma presa fácil ao despencar daqui de cima... direto pra boca da fera. A fera que ruge aí embaixo. Que estraçalha nossa cabeça antes do fim, aguardando apenas o momento de uma fraqueza fatal... da covardia da gente… do medo… ao escorregar pra baixo... isso golpeia insistentemente minha cabeça... quando eu não puder me aguentar aqui em cima... quando eu já não puder resistir...
A lei do retorno.
A filha da puta vai me estraçalhar... engolir os retalhos da minha carne.
Sempre fui um bicho também... tenho sido bicho a vida inteira... compreendo tudo agora... essa fera aí embaixo... desta vez não será difícil prever de quem será a vitória.
Calculo não estar muito longe do local da queda do avião... logo irão achar pelo menos meu esqueleto... essa caderneta...
Tô bastante cansado... pressentindo o fim... tenho sono... vertigens... começo a delirar... há um monte de gente aí embaixo... ou não? Os mortos? Esse monte de palavras... ou rugidos?
Parecem rugidos… mas não tenho certeza…
É o fim...
Acho que...
que...
q