Na mesma madrugada
A todo momento no mundo há pessoas nascendo e morrendo. É o fluxo da vida. Em nossas vidas também é assim: há pessoas que chegam, às vezes de repente, e permanecem; há pessoas que ficam algum tempo, depois se vão, às vezes de forma definitiva. Mas pessoas chegarem ao mesmo tempo, e depois partirem igualmente juntas, é algo bastante singular.
Conheci Valéria e Henrique já no primeiro dia de escola. Tanto eu quanto ele estávamos num canto da sala, apreensivos com aquela novidade de tantas crianças em volta da gente e sem nossas mães por perto. Aí ela chegou e nos pegou um com cada uma de suas mãos, nos fez sentar na mesa com quatro cadeirinhas para mostrar o desenho que ela estava fazendo. Foi o início de uma amizade que perdurou por todos os anos subsequentes.
O que mais chamava a atenção para Henrique e Valéria no colégio, é que eles faziam aniversário no mesmo dia. Como éramos sempre da mesma classe, todo onze de abril era o dia de cantar parabéns para a dupla. Por curiosidade, na sétima série se perguntaram em que período do dia haviam nascido, e constataram que ambos chegaram ao mundo na mesma madrugada. De certa maneira, essa peculiaridade fez com que se tornassem muito próximos ao longo de toda a vida escolar, e eu acabei me tornando o amigo de todas as horas tanto de uma quanto do outro.
Só que não eram nada parecidos: ele, quieto, compenetrado, estudioso, tímido. Ela, questionadora, rebelde, agitada, um verdadeiro furacão. Porém, se alguém precisasse de qualquer coisa, seja um colega de classe ou para alguma atividade na escola, estavam sempre à disposição para ajudar. Tinham isso em comum: um coração enorme. Foram amiga e amigo inestimáveis não só meus, mas de toda a turma. E na formatura do terceirão, nem a direção nem os professores puderam disfarçar que eram de fato pessoas muito queridas por todo o colégio.
Depois disso nos distanciamos um pouco. Ele meteu na cabeça que queria ser promotor, mergulhou fundo nas apostilas e cursinhos preparatórios, passou os outros três anos nessa rotina de muito estudo e pouca vida social. Foram raras as vezes em que vi o Henrique nessa época.
Já a Valéria foi fazer artes cênicas na capital. Fotogênica, começou com alguns ensaios fotográficos e propagandas para revistas. Uma campanha publicitária estampou seu rosto em outdoors espalhados pela cidade, e logo apareceu a oportunidade de fazer um comercial para a tevê. Um certo dia apareceu por aqui com uma harley davidson de nem sei quantas cilindradas, uma baita moto para dar vazão à sua sede de liberdade. A mãe dela quase infartou ao ver aquilo, não se acostumaria nunca com a porra-louquice da filha.
Enfim, o Henrique se tornou promotor, e a Valéria iria estrear sua carreira como atriz de novela. Já era conhecida dos palcos de teatro. Com as novas tecnologias e as redes sociais, voltaram a se comunicar. E houve um fim de ano em que estavam de férias na cidade, e nos encontramos no bar do Joca para tomar umas cervejas e relembrar a época de escola.
Já naquela ocasião, o Henrique não me pareceu muito bem. Semanas depois veio a notícia de sua doença: um câncer bastante agressivo que arrebatou sua saúde rapidamente. Um dia recebi mensagem da Valéria, preocupada porque ele não a respondia mais. Lá da capital não soubera de sua internação. Mas aqui, todos tínhamos a triste constatação de que ele poderia partir a qualquer instante. Então ela terminou a conversa dizendo: “chego no máximo amanhã de manhã”.
Henrique faleceu pouco depois da meia-noite. Nem bem amanheceu o dia, chegou a notícia de que Valéria tinha sofrido um acidente na estrada com a sua harley davidson. E assim como haviam nascido, se foram: na mesma madrugada.