As Pontes de cada Era
Descarreguei um caminhão cheio de dinamites. Era dinamite em cima de dinamite, ao ponto de nem sabermos como não explodiu no caminho. Meu pai, senhor Ludovico (pronuncia-se Ludobico), assistia com peso no olhar. Torcia os olhos em lágrimas, mas logo secava na manga da sua túnica, mas sem me ajudar em momento algum.
Passei o dia descendo cautelosamente os explosivos, colocando-os no meio da rua. Quando descarreguei tudo, já no final do dia, meu pai pegou vagarosamente uma dinamite, levou-a à única ponte que liga a cidade ao mundo exterior.
— Vamos filhote, essas bombas não vão chegar na ponte sozinhas — disse com o mesmo peso no olhar de antes.
Eu estava curioso. Por que destruir a ponte e por que tanta tristeza? Perguntei:
— Pai, por que o senhor está tão triste? Parece até que algum familiar morreu...
— Não morreu, mas está prestes a morrer. Essa ponte tem mais história que nossa família inteira.
Isso atiçou mais ainda minha curiosidade. Eu queria saber o que de história tem essa ponte. Enquanto levávamos as dinamites pedi:
— O senhor pode contar a história da ponte? Se o senhor souber, é claro.
Rapidamente o olhar choroso do ancião se transformou num sorriso discreto, mas logo em seguida fechou o rosto novamente.
— Estou velho, mas não tanto ao ponto de esquecer da história, nem tanto ao ponto de ter vivido. Mas posso contar. Olha aqueles quipus na entrada da cidade, o verde, o bege, o marrom e o cinza. Cada um representa uma era da ponte e cada nó um século.
— Eles estão aí na entrada desde que me entendo por gente.
— Eles estão aí desde que EU me entendo por gente — disse meu pai — mas continuando, o cordão verde tem três nós, dos três séculos da ponte de cordas. Eram três cordas amarradas em cada extremidade do abismo. Nossos ancestrais tinham que se equilibrar para atravessar a ponte. Mas mesmo rudimentar, foi assim que chegamos a essas terras, por meio dessa ponte. Muitas famílias ficaram sem pais por eles terem caído da ponte. Vide os Pinuyqrac, não tem túmulos dos mais antigos, pois foram para o outro lado e quando foram voltar se enrolaram nas cordas e caíram.
— Isso é triste, mas como isso durou três séculos?
— Era para ter durado até mais, mas o imperador Menapoyn unificou as então vilas, e propôs o projeto de modernizar a ponte para facilitar o comércio. Assim começou a era do quipu bege, com cinco nós. A ponte era então feita de madeira e cordas. No mínimo tinha uma área maior para pisar. Os acidentes diminuíram drasticamente, tinha que ser muito imbecil para cair dessa ponte.
— Essa ponte deveria ser bem melhor de usar, mas como faziam para transportar coisas pesadas?
— Aí que tá meu filho, depois dos cinco séculos começou a era do quipu marrom, que durou dois séculos. Os espanhóis se assentaram ao norte do império, e cobiçavam nossa prata. Comprávamos cavalos e vendíamos prata, mas como é de se imaginar cavalos não passavam por essa ponte rudimentar. Os “engenheiros”, se é que podemos chamar assim, construíram uma ponte inteira de madeira, com madeiras encaixadas e pregos de estanho.
— De estanho? Não é muito frágil?
— Até era, mas não tínhamos metalurgia avançada. Aí que vem a era do quipu cinza. O espanhol Juan Sarmiento se declarou imperador, derrubando a dinastia do Menapoyn. Tanto que a grafia da nossa cidade passou de Tzarinoch para Tisarinoque. Culturalmente foi cruel, nos forçaram a falar espanhol, fizeram com que nós usássemos calças mais justas e aboliu a antiga religião. Entretanto, eles trouxeram a metalurgia. Nossos estudiosos foram para a capital estudar, e então com o conhecimento adquirido fizeram essa ponte de metal. Agora esses dois nós no quipu cinza serão só história.
Eu senti uma fração da dor do meu pai. Ter a cultura devastada tantas vezes é cruel. Mas não entendia porque destruir o resquício dela.
— Pai, por que estamos colocando dinamites na ponte que é tão importante para nossa identidade?
Ele me puxou pelo pulso, se afastando da ponte. Acendeu um extenso pavio e observou atentamente os últimos instantes da ponte.
— Filho, estamos em guerra. Temos que destruir nossa única conexão com o mundo para não perdermos nosso mundo. Se invadirem, nem a ponte e nem nós estaríamos vivos para contar história...
E assim a primeira dinamite explodiu, causando uma reação em cadeia, destruindo o resto da nossa cultura material.