Vilarejo dos Sonhadores
Vivíamos numa vila pequena, dava para contar nos dedos o número de casas. Ninguém tinha família; cada casa, uma pessoa. O lar de cada um era um templo à sua individualidade. Fazíamos nossas coisas, ouvíamos nossas músicas, trabalhávamos em nossas oficinas, cozinhas e garagens e, sobretudo, escrevíamos nossas histórias. Todos gostávamos de escrever.
Toda sala de estar no vilarejo tinha uma escrivaninha e estantes de livros. Ali estava tudo que uma pessoa lia e escrevia e também os discos (sim, nós tínhamos!) e filmes, um verdadeiro portfólio da alma de cada um. Embora vivêssemos num santuário de individualidade, ninguém no vilarejo era solitário, todos os dias visitávamos uns aos outros. Fim da tarde, hora do café. A luz do dia se esvaía lentamente e as luzes fracas daquelas salas de sonhos se acendiam. Sempre uma visita de alguém para conversar, tomar um café e falar do que estava lendo ou escrevendo.
Éramos criativos. E personalizávamos nossas casas com os temas que mais amávamos escrever. Tinha quem fazia a casa como uma toca de hobbit; outro vivia dentro de um submarino de Verne cheio de histórias de criaturas marinhas; um terceiro preferia uma casa estilo cabana cheia de fotos e relatos de viagens para lugares distantes. E ainda tinha aquele que gostava de histórias sombrias do espaço e de mundos alienígenas. Visitar cada um era sempre uma oportunidade de ouvir narrativas misteriosas, grandes personagens, dramas profundos, grandes questões. O tempo voava durante conversas.
Mas eu parti. Um dia decidi que deixaria a vila e buscaria outras paragens. Achei que meu mundo era muito pequeno, embora em cada casa daquelas o mundo fosse infinito. Me vesti para uma longa jornada, coloquei poucos pertences na mochila e parti. Também ao pôr do sol, no horário do café e das conversas.
Hoje, depois de um tempo que parece décadas, retornei ao vilarejo. Por onde andei vi muitas coisas, deixei pedaços de mim pelo caminho e agreguei pedaços do mundo. Fui um, voltei outro. Perdi-me, encontrei-me, voltei a me perder. Minhas esperanças e meus sonhos mudaram, até minhas memórias foram editadas. Mas da vila, nunca me esqueci. A saudade da vila estava lá, em toda parte no mundo exterior, em cada solidão vivida, cada ausência de conversas, cada secura de um mundo onde ninguém mais criava. O mundo inteiro era um lugar menor que o vilarejo.
Então decidi voltar. Se não para ficar, pelo menos para matar saudades. Esperava ver todos, ouvir velhas e novas histórias, visitar os sonhos de cada um, aquele deleite de fim de tarde envolvido no cheiro do café e de pães. Mas quando cheguei na vila o que encontrei foi muito diferente.
Não havia ninguém nas ruas nem na frente das casas. Portas e janelas largadas abertas, ao sabor do vai e vem do vento. Vi a casa do meu amigo que escrevia coisas sombrias. Entrei. Seus textos estavam sobre a escrivaninha, o vento folheava com violência e indiferença as páginas de seu caderno de escritos. Apesar do abandono do lugar, nenhuma folha foi rasgada, mas também não foram apreciadas. Tudo estava ali, disposto de qualquer jeito. Havia poeira, teias de aranha, um prato num canto com restos de biscoito. No centro da sala, uma mesinha com o único romance que ele escreveu. Uma história boa, mas com algumas lacunas e arestas a serem lapidadas, como é de se esperar de qualquer primeira experimentação nesta seara. Talvez eu tenha sido seu único leitor e disso, muito me orgulho. Uma história que, num mundo de bilhões de pessoas, só eu, além de seu criador, tive a oportunidade de conhecer. Me sinto um privilegiado.
Nas paredes, os pôsteres mofados de velhas bandas de rock cada vez menos ouvidas, mas onde ele costumava ver energia e empolgação. Aquele lugar estava cheio do mundo do meu amigo. Senti uma saudade ainda maior. Onde estava ele? Olhei pela janela e as outras casas também denunciavam partidas. Foram deixadas ao vento, abandonadas como se riqueza alguma nelas existisse.
Fui à casa de meu amigo fã de Júlio Verne. Sua casa-submarino também estava de porta aberta. Também não se preocupou de fechar. Sobre a mesa, histórias de ficção científica. Máquinas fantásticas, planetas remotos, raças alienígenas. Adorava visitá-lo. Eu também era amante de ficção científica.
Me sentei na cadeira de sua escrivaninha. Passei o olhar lentamente por todo o lugar, o coração cheio de nostalgia. O teto de sua sala era um mapa celeste, do tempo em que as pessoas ainda desenhavam esse tipo de coisa e não procuravam em aplicativos. Na parede oposta, a planta do Náutilus, o submarino das vinte mil léguas. O telescópio outrora reluzente, agora jazia empoeirado na estante. O pôster do Carl Sagan, rasgado pelo vento da janela do esquecimento, dizia a célebre frase “o homem é um modo do Cosmos conhecer a si mesmo”. Nossa! Me lembrei que levamos uma tarde inteira falando sobre aquilo. Nossas ideias vagaram por questões do tamanho do universo. Além do vilarejo, pessoas só falam de questões do tamanho de pessoas.
Olhei o céu pela janela, as primeiras estrelas ensaiavam um brilho tímido, ainda ofuscado pela tarde que se demorava a partir. Não havia mais energia elétrica por ali, mas encontrei uma caixa de fósforo e umas velas. Era o bastante. O vento, porém, intimidava a chama da vela, ameaçava extirpá-la. Ela se encolhia, quase mergulhava na noite, mas quando o vento cansava, voltava altiva.
Pela janela, olhei minha antiga casa há alguns metros de distância, do outro lado da rua. Fiquei pensando em como ela própria estaria, um mundo distante que deixe para trás, congelado no tempo. E tal como encontrei meus amigos em seus legados deixados para trás, lá eu encontraria outra pessoa.
Alguém que não mais existe. Mas alguém cujo brilho nos olhos ainda se pode perceber no entusiasmo de cada linha escrita nos cadernos deixados sobre a mesa. Alguém que se foi, mas esqueceu-se em tudo que deixou. Cada frase escolhida, cada verbo escolhido a dedo, cada cena descrita com ênfase e cada detalhe intencionalmente omitido, em cada uma dessas coisas é onde mora aquele que não mais habita a casa.
A pequena chama histérica, atordoada pelo vento caudaloso, reluziu em algo sobre a mesa e isto despertou minha curiosidade. Era uma xícara. Uma única e solitária xícara com um resto de café, deixado para trás pelo sonhador que partiu para longe.
Para onde foram todos? Será que também visitam este lugar? Ou dele se esqueceram de vez?
Só o vento corria livre por ali, abençoado pelo brilho distante das estrelas.
Só o vento habitava o vilarejo agora, abençoado pela luz das estrelas. As muitas memórias e sonhos de cada um que ali vivia ainda resistem, apregoadas nas espirais dos cadernos. Mas um dia, também elas se despenderão, como as folhas das árvores no outono. E serão carregadas pelo vento para qualquer lugar onde a chuva e o mundo lhe darão túmulo.
Fui até a porta e olhei para fora. O vento, soberano absoluto do lugar, ganhava cada espaço de todo o vale, como correnteza violenta feita de ar. Vindo de lugar qualquer e indo para qualquer lugar, sem razão, sem filosofia, sem propósito. Apenas existência viva, único a viver confortável na mansão infinita do tempo. E nós não passamos de criaturas pequenas, confinadas a um trecho breve dessa correnteza impetuosa.
Respirei fundo, deixando-me inundar pela paz da noite. Incansável, o vento apagou a pequena chama valente, entregando a escuridão do mundo à luz das estrelas longínquas e ecoando seu assobio até além do distante horizonte.