E disse a serpente à mulher: Não morrereis. Pois Deus sabe que no dia em que comerdes dele, vossos olhos se abrirão e sereis como Deus, conhecedores do bem e do mal.” Gênesis, 3:4,5

 

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Na continuidade desta história vamos imaginar Samael enrodilhado em volta de uma árvore de frutos dourados que exala um aroma semelhante ás das maçãs azuis que nascem nas alturas geladas do Tibete. Não esqueçamos que ele pode tomar a forma que quiser e agora ele parece uma serpente piton ou jiboia, sucuri ou qualquer outra cobra grande que possa enrolar-se em volta de uma árvore.

O fato de estar travestido de serpente não impede que ele pense e fale. Serpentes falantes são abundantes nessas histórias que Jung desenterrou do inconsciente coletivo da humanidade para justificar a presença dos avatares mais profundos que afloram em nossos sonhos e fantasias. E a grande maioria dessas histórias, como é bem de ver, sempre figuram dragões, serpentes, salamandras e outros animais dessa fauna a guardar segredos arcanos que só podem ser comunicados a uns poucos escolhidos. E não há segredos mais profundos do que aqueles que o nosso inconsciente guarda, de sorte que, se há uma porta dentro de nós por onde um sedutor do tipo Samael, ou o Diabo, se preferirem o termo, pode entrar, é exatamente o nosso inconsciente pois ele é uma espécie de hotel sem regras que aceita qualquer hóspede sem fazer perguntas.

Samael está pensando e seus pensamentos não são nada consentâneos com sua origem angélica. Para começar, não gosta nem um pouco do aspecto que está ostentando naquele momento, mas sabe que é necessário assumir essa forma para realizar os propósitos pelos quais ele está ali agora. Ele, que era um esbelto arcanjo, cujas faces brilhavam como a luz do sol, agora se apresenta  na pele de um réptil rastejante e asqueroso, que se arrasta sobre o próprio ventre, deixando escamas por onde passa; e como voz só consegue emitir um sibilo cavernoso que parece o assobio do vento passando por um canudo de junco. Pudera: sua língua agora é uma lâmina fendida em duas falanges que lhe escapam, como enguias, pela horrível bocarra, junto com uma gosma esverdeada que escorre pelo par de pontiagudas presas.

Já sabemos que esse é apenas um disfarce. Na verdade, Samael era uma das mais belas criaturas que o Senhor dos Céus ― também conhecido como Deus,  e agora que ele havia feito o mundo, se chamava Jeová e mais uns dez bilhões de nomes ― havia feito. Seu status era bastante respeitado entre as entidades que o Ser Supremo havia criado na segunda etapa da sua manifestação como realidade material. Ele e o seu companheiro Miguel eram os dois Primeiros Tenentes das hostes angélicas que o Senhor havia manifestado nas primeira etapas da Criação, e a eles havia sido dada a função de atuar como polos positivo e negativo da Criação. Miguel, o Elohim, era o polo positivo ― aqui compreendido como as qualidades morais de Deus, que seriam projetadas no homem,  o espírito, por assim dizer ― e Samael, o Querubim, o negativo, neste caso referido como as qualidades físicas que lhe seriam dadas, tais como a força, o movimento, a acuidade sensitiva e todas as sensibilidades que lhe seriam necessárias para sobreviver no ambiente que conhecemos como matéria, em oposição às qualias morais, que chamamos de espírito.

Entende-se, dessa dicotomia, a razão daquilo que hoje chamamos de mal existir no mundo sem que Deus se proponha a extingui-lo. Pois se ele quisesse bem que poderia fazê-lo, pois ele é Deus e Deus tudo pode. Mas ele precisava dar aos homens aas qualidades dos sentidos para que o bem pudesse existir, pois ninguém saberia o que é o bem se ele não pudesse ser contrastado com o mal. Daí dizer-se que diaboli est deum  inversus, o que quer dizer, não que o Diabo seja a cara-metade de Deus, mas que sim que ele faz um papel necessário para que ele, Deus, possa se manifestar na vida do universo e principalmente na consciência do homem.

A consequência dessa estranha dicotomia, que aos ouvidos conservadores poderá até soar como herética, é que o Diabo é necessário para que a corrente energética que Deus espalhou pelo vazio cósmico, em forma de luz diáfana, possa gerar todas as realidades daquilo que vem a ser o universo conhecido. Destarte, Samael sabia que Deus criara o mundo em dez etapas de manifestação da sua Potência e essa obra durara sete dias, que correspondia a quinze milhões de anos terrestres. E ele, juntamente com Miguel fora um dos primeiros arcontes que saíra da sua garganta quando ele emitiu o primeiro dos sons que gerou a energia com os quais iria construir o mundo.

Dessa ordem, já informado que ele era um Arcanjo pertencente à Ordem dos Querubins enquanto Miguel fazia parte da Ordens dos Elohins e que ambos haviam surgido na etapa conhecida como Mundo Criativo, momentos depois que Deus deu o grande grito “Eu Sou” que libertou a energia que saiu do exíguo espaço onde estava concentrada, para gerar, primeiro o tempo e o espaço e depois as leis e as combinações energéticas necessárias para que o universo material passasse a existir, passamos a justificar a razão pela qual Samael travestiu-se de serpente para seduzir o casal humano.

Samael, que estava nesse início de todas as coisas que podem ser pensadas, imaginadas e catalogadas, quer seja, o universo material, também se lembrava do imenso calor que aquela explosão de energia provocada pelo grito de liberdade que o Senhor emitiu. E como aos poucos esse calor foi se resfriando e a energia liberada, em forma de uma luz de infinita velocidade, foi se condensando em minúsculos blocos que foram adquirindo massa e forma. Pois foi assim que Deus deu início ao mundo material e ele, Samael, era comparte desse processo. Porque ele mesmo, como todos os seus confrades das demais Ordens angélicas, tais como os Aufanins, Aralins, Malaquins, Elhoins e Querubins, eram feitos de partículas da imensa energia que Deus emitira quando dera o grande grito “Eu Sou” para sair da sua Existência Negativa e se tornar uma Existência Positiva. E ele, como todos os seres angélicos, viajavam pelo espaço cósmico a uma extraordinária velocidade, combinando-se, uns com os outros, para formatar a realidade universal. Eles eram centelhas da energia que o Ser Supremo espalhou pelo espaço-tempo do universo, para dar-lhe forma e identidade, o que quer dizer que se os chamássemos de átomos, hádrons, táquions, férmions, elétrons e outros bizarros nomes com os quais os doutos de hoje chamam às partículas de energia que constituem a matéria universal não estaríamos falando nenhuma bobagem.

Samael e Miguel correspondiam aos dois mais importantes atributos do Ser Supremo, qualificados como matéria e espírito, qualias segundo as quais Deus iria ancorar a parte mais importante da Criação, que seria manifestada no sexto dia da sua Obra, condensada no ser humano. Por isso Deus dera a Samael a incumbência de guardar a árvore do conhecimento do bem e do mal, na qual se estribaria a consciência que deveria guiar o ser vivente de quem o Senhor pretendia fazer a coroa sua Criação. O que quer dizer que os sentidos do homem serviriam para que o homem agisse naturalmente no mundo, sem noção de que seus atos seriam bons ou maus, nem certo nem errado, verdadeiro ou falso.

Tudo isso teria sido assim se o próprio Ser Supremo não tivesse, ele mesmo, modificado os propósitos da sua própria obra. Pois a Samael foi dada a incumbência de mediar entre o certo e o errado no mundo, desenvolvendo na Criação os atributos da consciência em sua dimensão material; e Miguel seria o patrono da parte espiritual dele evitando que ser humano se afastasse da sua origem celestial. Porque o bem, como tal entendidas as qualidades do ser superior, o substrato sutil que o fazia igual aos anjos, representava a herança divina a qual o homem tinha direito; e o mal, como tal entendido as qualias que ele adquirira ao se tornar um ser humano, era a sua parte material. Samael seria o guardião dessas qualidades, presentes nos sentidos do homem, preservando-as apenas no seu sentido de utilidade, como polo necessário para que o bem pudesse se manifestar, mas sem um componente de premeditação, que pudesse contaminar a alma do ser humano, que semelhante à dos anjos, é feita de uma centelha da energia inoculada no corpo do homem pelo Criador.

Resulta desse processo que ambos ― Miguel, representando o espírito e Samael, representando o matéria ― deveriam trabalhar em perfeita sintonia para que ambos constituíssem um caminho harmonioso pelo qual a corrente de energia despendida pelo Criador na sua ação criativa se distribuísse e desse como resultado uma criação na forma exata pela qual o Senhor a havia projetado. 

Por isso é que Deus fizera o homem. Para que ele refletisse na terra os seus atributos e com isso ele, que era inominado, ignorado e estava recluso em uma dimensão que entendimento nenhum alcançava, pudesse ser conhecido e honrado em toda sua glória. Como na sua Existência Negativa ninguém sabia da sua existência, o ser humano seria, no mundo da matéria, que era o seu próprio corpo positivado, o seu reflexo, o polo positivo por onde sua energia circularia e daria, em resultado, um mundo justo e perfeito. Samael se encarregaria dessa tarefa, como guarda dos sentidos da criatura humana, da mesma forma que Miguel se encarregaria de manter o elo de ligação do homem com a sua origem divina, guardando o seu espírito. Mas ao dar a Miguel uma posição hierárquica superior, o que fez valorando mais o espírito do homem do que a sua parte material, o Ser Supremo provocara um descontentamento no céu, que se alastrou entre os membros da Ordem dos querubins, que ele, Samael, presidia. Seus comandados não gostaram nada dessa escolha feita pelo Senhor, pois ela colocava os comandados de Miguel acima das demais hostes angélicas, numa relação de subalternidade que de maneira nenhuma lhes fazia justiça, até porque todos eram feitos da mesma substância e possuíam, de origem, a mesma importância no processo criativo do universo.

Agora, se ele, Samael, era tão importante para o desenvolvimento da criação, não lhe parecia nada justo o que o Ser Supremo fizera, dando a Miguel, que simbolizava o outro polo dessa relação simbiótica, maior importância no catálogo de atributos que o Criador pretendia refletir na sua criação e com quais esperava se tornar conhecido. Samael procurou lembrar ao Senhor que fora exatamente para se fazer conhecido que ele concentrara a sua potência num minúsculo ponto que não excedia mais de três milímetros de diâmetro formando uma espécie de ovo cósmico, que em dado momento se rompeu, lançando no espaço miríades incontáveis de centelhas de energia em forma de Luz. E nessa Luz esplendorosa, todos os germes do mundo que iria ser formado, acompanhado dos atributos arquetípicos de Deus, que seriam chamados pelo homem de Justiça, Bondade, Coragem, Tolerância, Sabedoria, Compreensão, Misericórdia Severidade,  Beleza, Vitória, Esplendor, Fundamento, Compassividade, Amor, enfim todas as qualidades que ele pretendia distribuir ao homem, como reflexo da sua própria imagem positivada. Nela também todos os atributos da matéria, que eram as suas potencialidades físicas que eram, também, qualias necessárias para que a energia do Criador circulasse e se formatasse nas realidades universais.

Destarte, Samael deveria espalhar pela Criação os atributos vinculados à condição humana da criação e Miguel os do espírito. E ambos compareceriam em pé de igualdade perante o Ser Supremo. Afinal, o que seria mais importante para a construção do edifício universal do que a matéria? Pensaria o Ser Supremo que os atributos do espírito seriam mais importantes do que os da matéria? O mundo que ele queria construir seria melhor se a espiritualidade fosse posta num altar mais alto do que a materialidade? Não era o próprio espírito feito de energia que se transmutava de sua condição grosseira para um estado mais sutil? E a matéria, quanto mais complexa se tornava em sua estrutura não se transformava, por sua vez, em espírito, já que tanto uma como outra, matéria e espírito, ambos eram feitos de energia que sofria transmutações nas múltiplas combinações que ela realizava em sua expansão pelo espaço cósmico?

Samael e seus comandados achavam que não deveria haver hierarquia entre os agentes de criação que Deus espalhara pelo mundo. Todos tinham a sua importância e nenhum deles deveria ser colocado acima dos outros. A matéria e o espírito não podiam ser valorados com pesos diferentes. Então ele, juntamente com seus comandados querubins foram cobrar de Deus uma reavaliação desse conceito e deu no que deu. O Criador não é um Ser que admite enganos. Muito menos que Ele possa cometê-los. Afinal ele É Deus, o Ser Supremo. Seus decretos são infalíveis e seu julgamento não comporta embargos de nenhuma ordem. "Miguel é o meu primogênito", disse o Senhor "e todos ficarão sujeitos a ele", que era o mesmo que dizer que a matéria deveria se submeter ao espirito e somente este seria valorado como virtudes a serem cultivadas.

Opondo-se com muita veemência ao julgamento de Jeová, Samael e seus comandados foram julgados rebeldes. Ser expulso da dimensão celeste, de onde a Luz Ilimitada de Deus emana e condenado a viver na dimensão da matéria grosseira e escura foi o seu castigo. Foi então que ele, Samael, passou a ser chamado Lúcifer, porque antes era o portador da luz, por conta da sua rebelião se tornou Satã, o que preside a escuridão. E já que era assim, concluiu Samael, se nada que fizesse faria o Criador voltar atrás no seu injusto decreto, então porque não seguir seu próprio caminho e se tornar, de fato, um rival na política de construção universal? Ele boicotaria o projeto inicial do Criador e desenvolveria os seus próprios planos. Para presidir o substrato da matéria que se formava na terra e fazer com que ela fosse o contraponto do espírito ele fora feito. Era o que ele faria, mas não como o Criador desejava. A matéria seria usada, não para servir de polo positivo para a transmissão da corrente energética que saia do Criador, mas, principalmente para fazer com que a centelha de luz divina, que era a alma inoculada no corpo do homem pela Palavra Sagrada fosse conspurcada e contaminada pelo veneno do chamado Ego. Por isso agora ele estava ali, travestido na forma de uma serpente, enrodilhado em volta daquela linda árvore de dourados e apetitosos frutos, que Deus plantara em meio aquele frondoso jardim, que agora sabemos era o próprio corpo de Adão, feito à imagem e semelhança dos Elohins, porque nele se refletiam os atributos de Deus. Ardiloso como era, Samael usaria a própria Criação de Deus para realizar a sua vingança.

(continua)