A CELEBRAÇÃO
Cheguei àquela urbe provinciana no final dos anos sessenta (60); vinham comigo verdades e imaginações, posicionadas na convicção ilusória sobre sociedade e conduta religiosa. Acolhia, sem ponderações, o argumento impronunciado que, em princípio, acoplava razão e fraternidade na mesma dimensão. Admitia irrefutável ser a provisão da igualdade e da justiça, a essência das estruturas sociais, sem distinções impostas por discriminação ou preconceito.
Ainda no caminho, próximo à cidade, via-se distante, rompendo a linha do horizonte, duas torres imponentes e acuminadas, de superfícies brancas. Os ápices multifacetados, terminavam em cruz metálica, artisticamente posicionadas nos cumes, apontando o céu. Vistas daquele ponto pareciam transpor, nas alturas, um manto de nuvens acinzentadas, densamente carregadas, suspenso na atmosfera. Na medida da aproximação percebia-se, aos poucos, o alongar das torres, edificadas em contiguidade com as bases laterais de majestosa construção, integrando um complexo de edificações do qual destacava-se, em suntuoso porte, o templo sagrado, cingido à frente por calçada elevada em degraus cimentados, configurando um espaço frontal amplo e iluminado. Era a igreja matriz, das celebrações dominicais.
Embevecido aos encantos do mundo urbanos, fruí por longas horas, à distância, aquele espaço construído através dos séculos; uma cidade que fora dos coronéis, latifundiários e fazendeiros importantes, que deixaram nos anais do tempo suas façanhas, riquezas e decisões, tantas vezes fora do alcance da lei e da ética. Os estigmas do poder e da ostentação preservaram-se, contudo, não inibia os vestígios que recendiam a escravos, jagunços e capitães-do-mato, esteio econômico e político daquele cenário sinistro e refulgente. Adentrei no espaço urbano, encantado. Era uma experiência singular e inesquecível, na qual o belo e o trágico partilhavam o altar e os mesmos fiéis.
O abrigo sem conforto que me acolhia, expressava a contradição da realidade, alheia às minhas crenças; miséria e opulência teciam o mosaico social da grande urbe; cimentava os interstícios a força coercitiva da pretensa hierarquia social. Uma relação repulsiva e odiosa entre dois mundos contíguos, interdependentes e inconciliáveis, retratava um apartheid social consolidado no beneplácito da história e da cultura. As ruas por onde transitavam os escolhidos eram evitadas pelos lázaros, suposto que a desgraça destes não deveria conspurcar a beleza dos espaços aos legítimos cidadãos a quem Deus agraciara com distinção de riqueza e poder.
A curiosidade impulsionava-me à experiência, então troquei a roupa suja e segui, ao rigor do sol inclemente, a larga via pavimentada que se estendia até a calçada do grande templo. Era celebração dominical naquela manhã de março sem chuvas. Do alto das torres vinha o dobrar dos sinos a indicar a iminência do culto. Alarguei os passos e alcancei a magnífica construção onde, feliz adentrei esperançoso; acalentado por sentimento de jubilosa gratidão, ocupei um assento lateral e aguardei.
Os assentos próximos, frontais ao altar-mor, eram ocupados por gente brilhante, distinta, cujas vestimentas se sobressaíam por raridade e cobiça, talhadas à moda metropolitana. As mulheres tinham cabelos cingidos com adornos belos e cintilantes que exibiam orgulhosas, como distintivo de privilégios e condição social. Ocupavam os primeiros bancos, de modo a serem vistas e contempladas. Movimentavam-se em mútuos reparos dos adereços, que tornava flagrante o sentimento de emulação naquele indisfarçável e fervoroso culto à aparência.
Os homens, entre o luxo e a soberba, atinham-se ao meticuloso cuidado em reposicionar o colarinho engomado, reacomodar a gravata com gestos solenes e delicados; alguns dentre eles dispunham os pés muito à frente dos bancos, de modo a ostentar os lustrosos sapatos; outros falavam sobre dinheiro, prestígio e poder, em voz audível e célebre, como a invocar atenção e reverência, todos indiferentes à sacralidade do ambiente. Pessoas humildes ocupavam assentos laterais distantes, outros em pé, ninguém ousava imiscuir-se naquele panteão farisaico, à frente do altar. Aos observadores não escapava a transformação do templo sagrado em amostra indisfarçada de apartheid humano, naquela passarela de ostentações.
Ao celebrante, que diligenciava nos exórdios do ritual, parecia bem ter na plateia aquela elite da qual podia, com sofismas pré-elaborados, elevar o ego, exaltando-lhe a suposta autenticidade cristã, e angariar recursos e benefícios. Principiou por anunciar que — fé e generosidade têm a mesma medida, aos olhos de Deus. Portanto, aqueles que buscam a salvação não hesitem em manifestar sua fé. — Prosseguiu assegurando que — a proximidade de Deus é dada pela medida do desapego dos bens materiais, em especial, no templo sagrado, na presença do Altíssimo. — Exortou, com autoridade, o velho ministro.
Ato contínuo, um prestimoso acólito, de olhar piedoso, fez passar por entre os presentes, sacolas nas quais recolhia doações em dinheiro. Dizia, com fervor, a cada um dos quais se aproximava que, — aos olhos de Deus, a doação generosa na terra tem corresponde em dobro, no céu. — Várias sacolas passaram e, repletas retornaram às suas acomodações, na sacristia. Observei que dos assentos privilegiados vieram tímidas contribuições. Julguei que, a certeza da salvação dispensa, ao certo, demonstrações de fé, na sua versão pecuniária; talvez justificasse ali, contexto e conduta.
Iniciando o culto ouviu-se do celebrante, a voz rouca e decrépita anunciar a honrosa presença de alguns cidadãos, citando-lhes títulos e nomes, seguidos de expressiva adjetivação, um gesto cuja natureza comportava, a um só tempo, hipocrisia e subserviência. Contudo, a surpresa não mais impactava, firmava-se nos limites do esperado para a insólita experiência.
A celebração fluía normal, quando se ouviu a exortação ritual: — saudai-vos uns aos outros! —Em movimento solene, quase teatral, o seleto grupo se cumprimentou, sem deixar o próprio assento. Invisível era a multidão que o cercava à distância. Não me atrevi ao gesto ritual, temia reveses e seus agravantes. Seria, pensei, transgressão e execração simultâneas, ali mesmo, perante o mundo e a vida. Portanto, ative-me à outra margem, sem redes nem barco, sem peixe nem provisões.
Ao final, todos se encaminhavam à saída, quando observei a sórdida tradição ali manifestada à luz do dia: saíam primeiro os socialmente aforados, figuras humanas lustradas pela adjetivação aleivosa do pastor, ao testemunho público; depois, a massa amorfa dos deserdados, cuja consciência parecia acomodar e naturalizar a antropofagia do dragão. Seguindo o grupo que saía, alguém deteve-me pelo braço, exortando que — O Dr. Alguém ainda não saiu, espere! Assustado, aguardei os efluentes humanos sem com eles me identificar. O olfato ressentia-se no odor de uma moral coletiva em decomposição.
Não mais retornei aos cultos naquele templo, um sentimento de hostilidade ainda pairava sobre mim à lembrança da fatídica celebração. Por fim, decorridos quatro (4) décadas, um religioso consagrado de respeitável conduta, afirmou durante um retiro espiritual: — Tenha certeza de que, se Cristo retornasse, daria uma surra, a exemplo do que fez na Sinagoga, nos bispos e cardeais, pela conduta anticristã que assumem. Frequentemente, a casa de Deus torna-se o lugar menos provável da sua presença. — Concluiu o religioso, com absoluta sinceridade e indignação.