Tudo começou quando Deus fez o céu e a terra, Num simples ato de Vontade exercida. E para dar sentido ao que nela se encerra, povoou-a com diversas formas de vida. E assim formou-se o reino dito animal, com criaturas da terra, da água e do ar; E para dar remate a essa obra magistral, Ele fez o homem, sua criatura modelar. Do pó da terra ergueu o homem Adão; Com um sopro o tornou alma vivente. Multiplicar-se se lhe foi dado por missão. Para garantir que fosse bom o resultado, Deus fez a mulher, a criatura surpreendente, que todo homem necessita ter do lado.

A se crer nessa narrativa Deus teria feito a mulher a partir de uma costela de Adão, que ele tirou e usou como matéria prima para essa obra de engenharia genética, digna do melhor cirurgião moderno. É dizer que Deus, num momento de inspiração e de reflexão deva ter pensado “Eu conheço a solidão e sei o quanto ela é triste, por isso fiz o mundo e o homem para ter com quem me comunicar”. E da sua condição de Ser solitário tenha transposto seu próprio sentimento em relação ao ser que havia produzido; E com base nesse sentimento tenha dito a Adão, “ Bem sei, Adão, o quanto é triste a vida de um homem solitário, por isso vou te fazer uma companheira”. E dessa sorte tenha feito com que ele se deitasse e dormisse, talvez com alguma anestesia ou sem ela, porquanto desse poder era revestido. E dele tivesse retirado, não uma costela, como foi dito, mas uma célula, que é mais consentâneo com as modernas práticas da engenharia genética e mais fácil de acreditar também, Ou, o que seria de mais fácil digestão para a cabeça de quem quer ver em tudo um sentido lógico e passível de verificação empírica, imaginar que Deus tenha colhido um pouco do esperma de Adão e com ele tenha feito uma inseminação artificial à moda do que hoje se fazem com casais que não conseguem gerar filhos pelos meios naturais.

        A questão que se levantaria com essa última possibilidade seria explicar de onde Deus tiraria o útero no qual a inseminação poderia ter sido feita, posto que não havia nenhuma mulher à disposição para tanto. Mas isso também pode ser resolvido com a informação de que Adão, tal como os anjos, era andrógeno, o que quer dizer que tinha em seu organismo as duas partes do ser humano. E essa não é uma proposição temerária porquanto se sabe ― e o próprio Deus não nega, já que ele fez o mundo material para servir de polo positivo para poder manifestar a sua Potência, que só existia antes de forma negativa ― que tudo precisa de dois polos para existir. Assim, se Adão continuasse a ser andrógeno e gerasse os descendentes humanos da forma que fazem os hermafroditas, a corrente energética que anima os seres humanos se extinguiria no meio do caminho pela falta dos dois polos necessários que toda força necessita para circular. Destarte, a se contar com essa possibilidade, que parece até bem mais palatável que a que foi veiculada pela via canônica, a criação da mulher teria sido uma espécie de operação semelhante a que se faz hoje para redesignação sexual de um indivíduo transsexual, separando em dois sexos o que estava alojado em um único organismo. Essa nos parece uma explicação bem mais consentânea com a realidade desse fato, porquanto até hoje se consente que há no macho uma porção de fêmea, da mesma forma que na fêmea subsiste uma porção de macho, o que causa nos dias atuais tanta confusão, que até os tribunais superiores já foram acionados para opinar sobre a questão.

       Por outro lado, há informações, prestadas pelas mesmas fontes que foram responsáveis pela disseminação dessa história ― conquanto muitos as considerem apócrifas ― que dão conta de que Eva não teria sido a primeira mulher feita por Deus para companhia de Adão, mas sim uma guria chamada Lilith, que a exemplo de Eva teria sido levantada, esta sim, do pó da terra, na mesma ocasião em que Adão foi criado. Mas essa mulher, por ter sido criada pelo mesmo processo que engendrou Adão logo brigou com ele e se revoltou contra a dominação a que ele quis impor sobre ela, o que leva a pensar que esses arroubos de afirmação feminina que se levantam nos dias atuais não é, nem um pouco, coisa das mulheres de hoje, porque já nessas antigas calendas Lilith já era portadora dessa bandeira.

Não sabemos se por fontes canônicas ou apócrifas narrativas essa informação veio à baila, mas noticiou-se que Adão e Lilith, assim que saíram da forma, imediatamente começaram a brigar, e isso é mais fácil de acreditar porquanto até hoje é assim; tudo vai bem enquanto se namora e depois do prazer obtido pelo conúbio cada um vai para a sua casa. Mas depois que se vai morar junto e se começa a perceber as diferenças que existem entre os parceiros as coisas mudam, e se não se aprendeu a exercer tolerância e estimar mais a paz do que a proteção do Ego, o que eram arrufos e beijos se convertem em tapas e pescoções.

       E nesse sentido é que Lilith teria dito a Adão, na forma mais feminista que se pode imaginar: "Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir minhas pernas para que entres em mim? Por que devo ser dominada por ti? Não fui eu também feita de pó da terra? Não serei, por isso, tua igual?" A resposta de Adão merece ser registrada, por força de todas as querelas que se levantaram por causa dela depois disso e continuam a dar pano para mangas até hoje. Ele disse " Eu não vou me deitar por baixo de ti, apenas por cima. Pois você está apta apenas para estar na posição inferior, enquanto eu sou um ser superior." Ao que Lilith respondeu: "Nós somos iguais um ao outro, pois que ambos fomos criados a partir da terra". Se esse diálogo realmente ocorreu ou não é difícil de saber, mas há que se reportar que até hoje existem lugares no mundo onde se computa como manifesta ilegalidade a mulher ficar por cima do homem na execução do ato sexual, como acontece no estado americano do Massachusetts, por exemplo, onde mulheres são multadas e até presas por cavalgarem o macho nessas ocasiões.

      Ao que parece eles não conseguiram entrar em acordo e quando Lilith percebeu que isso seria impossível, conta-se que ela pronunciou o Nome Inefável de Deus e voou para longe, deixando Adão com a boca aberta e o negócio intumescido na mão, o que o levou a apelar para Deus dizendo: "Soberano do universo, A mulher que você me deu fugiu!" E Deus, ao ouvir a queixa de Adão, enviou três anjos atrás de Lilith para trazê-la de volta. Os três  insistiram para que ela voltasse para Adão, ameaçando inclusive afogá-la no mar, mas sendo, como era, uma mulher de opinião, ela se recusou veementemente a voltar, razão pela qual foi condenada por Deus a perder cem filhos por dia, o que, com o natural aumento da população terrestre se tornariam mil, depois milhões e ai por diante. Então, para se vingar de Deus e da raça humana, Lilith se casou com Samael e tornou-se mãe de uma raça de seres híbridos, meio homens, meio demônios, que recebeu o nome de raça dos nefilins.  E foi só para compensar Adão desse relacionamento conflituoso  que Deus deu a Adão uma segunda esposa, que nós conhecemos pelo nome de Eva. Quanto à Lilith, ninguém sabe realmente o que aconteceu  com ela. Dizem que deixou o Éden e habitou na terra de Nod, onde segundo se conta foi reverenciada como rainha. Se tudo isso é verdade não sabemos dizer, mas está registrado que os tais nefilins existiram e ninguém sabe de onde vieram. Só se diz que eram filhos dos anjos caídos com as filhas dos homens, e se podemos admitir tais narrativas como verossímeis, nada nos impede de dar à Lilith um papel nessa história.

       Posto que não havia ainda o instituto do divórcio, temos um Adão abandonado no Éden, sozinho,  triste e inconformado, pois depois de ter experimentado o prazer de estar com uma mulher nada lhe resta, para recuperar esse prazer, do que usar a própria mão, mas este recurso, sabemos nós, foi proibido pelo Senhor, que o considera indecoroso e prejudicial á sua pretensão de encher a terra com seres humanos devotos e tementes à sua majestade; isso porque, a semente lançada fora do útero feminino morre sem encontrar terra fértil para prosperar, e isso, é um crime tão ominoso quanto o de lesa pátria, razão pela qual ele punirá o seu praticante com a morte, como fez com aquele Onan que nasceria alguns séculos depois. Foi, portanto, para evitar que Adão caísse na tentação desse crime, que viria a chamar-se onanismo, que Deus lhe fez uma segunda mulher, a quem ele deu o nome de Eva. E como a tecnologia de fabricação de seres humanos já havia avançado para uma etapa, digamos, mais técnica, Deus preferiu fazer Eva a partir de uma célula da costela de Adão, isolando o que nele havia de feminino e transportando essa qualidade para outro ser, o que, a bem da verdade, é bem consentâneo com modernas práticas de genética humana e hoje são corriqueiras em nossos hospitais.

     É claro que os autores dessas estranha narrativas não se deram conta do fato de que com elas estavam fazendo de Deus uma espécie de Dr. Frankenstein dessas antigas calendas, que a partir de partes de um ser constrói outro ser, visão essa que seria até engraçada se não ofendesse uma crença defendida com unhas e dentes por, pelo menos, uma metade da população da terra, que nela enxerga, não apenas uma curiosa metáfora, mas sim uma verdade literal mesmo. E dessa imagem, para não perdemos o curso da narrativa, vejamos Adão se levantando, ainda um tanto tonto como acordam todos os que são submetidos à operações cirúrgicas tão complexas, e vendo do seu lado uma nova companheira, mulher já composta com todos os atributos que lhe são próprios, os lábios úmidos e carnudos desejosos de beijar, os seios maduros em condições de amamentar e os órgãos sexuais prontos para receber a semente masculina e procriar, tenha dito aquelas palavras que foram registradas, “Esta, sim, é osso dos meus ossos e carne da minha carne! Ela será chamada mulher, porquanto do ‘homem’ foi extraída.”

      Tenhamos em conta que quem criou essas curiosas versões da criação da mulher não deve ter obrado no vazio,  pois que essa informação não surgiu apenas do bestunto dele, O que quer dizer que ela não foi gerada a partir do nada, nem saiu da sua cabeça por conta de uma imaginação fertilizada pela superstição própria de um povo que acredita ter sido escolhido para ser a maquete ideal da humanidade. Nem que essa informação tenha sido trazida por mensageiros do Reino Celeste, que de ordinário costumavam fazer regulares embaixadas ao território do dito povo escolhido.  Explica melhor quem diz, que na verdade essa narrativa se justifica na própria tradição de uma sociedade fundamentada no poder patriarcal, E assim é possível conferir alguma credibilidade a quem a cunhou e dizer que nada aqui foi inventado, mas apenas refletido a partir de uma crença vigente naqueles tempos. Porque o conflito pelo poder entre o homem e a mulher é coisa que vem de muito longe e bem certo está quem diz que o homem manda e a mulher obedece, mas no fim ele sempre faz o que ela quer; Mas é daí que se reproduziram histórias, lendas e superstições em voga no ambiente em que viviam, que com o tempo e todas as metalinguagens que se apõem a narrativas como essas se tornam verdades eternas, que só a muito custo e coragem de quem o faz, acabam sendo desafiadas.

       Porque também é sabido que entre os povos da região onde se conta que essa história se passou, desde aqueles antigos tempos existe a tradição do patriarca ver suas famílias como se elas fossem um todo orgânico que se agrega à sua própria anatomia. Assim, o chefe da família enxerga seus filhos, filhas, irmãos e consortes como sendo seus próprios braços, pernas, ouvidos, olhos, etc. o que resulta na fórmula metafórica na qual os antigos patriarcas se referem aos membros do seu clã como se fossem pedaços dele próprio.  Agora, ficamos a conjecturar no que Adão deve ter sentido ao acordar do seu letárgico sono e ver, do seu lado, uma mulher já adulta, toda prontinha, que não precisava ser conquistada com estratégias de sedução ou com outros encantamentos próprios que falam ao coração e principalmente ao Ego feminino, que nessas coisas de relacionamento é muito mais exigente que o masculino, E o que deve ter falado nesse momento para ela, pois que a mulher ainda não tinha nome naquele momento e, por inferência, queremos crer que nem ainda falava, o que só lhe foi possível depois de praticarem o pecado que lhes foi atribuído, o que desandou desbragadamente a fazer depois disso e ainda hoje é uma causa de desespero para o homem.

       A propósito, talvez Adão não tivesse mesmo dito nada, pois o que consta é que quem falou foi Deus e Ele disse ao então jovem casal, como se fosse um pastor no seu púlpito, ou um rei no exercício do seu poder de constituir ministros “Sede férteis e multiplicai-vos! Povoai e sujeitai toda a terra; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todo animal que rasteja sobre a terra!” Bem pode ser. Afinal, Deus é Deus e tudo pode fazer, a seu talante e sem precisar justificar porque o faz desse modo e não de outro que todo mundo possa entender e achar normal. Para o que não se justifica qualquer justificativa serve e esta, como qualquer outra cabe neste contexto, por isso a registramos e deixamos o seu julgamento para o leitor. Seja como for a forma pela qual a mulher apareceu no mundo, e se foi uma ou outra, no caso Eva ou Lilith a primeira, o fato inquestionável é que a cabeça do homem nunca mais foi a mesma depois disso. Porque, ao que parece, as maiores besteiras que ele comete na vida tem sempre um motivo ligado a uma mulher, de sorte que mais certo estavam aqueles gregos que diziam que a primeira mulher foi posta na terra como uma represália de Zeus contra os homens, porque estes haviam se rebelado contra os deuses depois que o titã Prometeu lhes entregou o fogo que havia roubado deles.  Pandora era o nome que os gregos davam à essa mulher originária, que ao descer na terra trouxe consigo uma caixa com todos os males que os deuses iriam prodigalizar aos homens dali em diante. Não dá para não pensar que essa narrativa não esteja associada ao sexo da mulher, que de fato, tem o formato, não de uma caixa, mas de uma pequena bolsa, bolseta, no dizer popular, o que derivou o termo chulo pelo qual é conhecido o órgão sexual da fêmea da espécie humana. De qualquer modo, com qualquer formato, ele pode ser vinculado à famosa Caixa de Pandora, considerando todos os males que um homem tem que enfrentar quando se prende a uma mulher mais pelos seus dotes sexuais do que por outros encantos, diremos, menos libidinosos. Mas como não se quer, neste nosso relato, levantar humores mais peçonhentos do que aqueles que normalmente afloram no espírito das pessoas que são confrontadas com narrativas que contrastam com crenças já nelas entranhadas, fiquemos com a imagem de que a mulher, seja ela Lilith ou Eva, foi feita com o propósito explícito de ser a cara-metade do homem e servir-lhe de matriz na qual ele derivaria seus descendentes. E com isso podemos justificar o curso que vamos dar a esta nossa narrativa.

(continua)