Quando enfim despedi-me de mim
Eu nunca fui desses caras que curtem muvuca e que anda cercado de gente. Sempre me senti acolhido no silêncio da minha casa, confortável no meu sofá, assistindo um filme que me fizesse parar de pensar na vida... Acho que sempre foi uma fuga. Nunca me senti atraído por essa euforia de esperar um show ou sentar em uma mesa de bar e beber todas com os amigos, rindo sabe lá Deus de quê! Ou de quem! Nem tenho amigos para tanto. Acho que a vida não pode ser apenas isso!
Nero me olhava tão profundamente... certeza de que estava pensando que eu estava enlouquecido... pouco entendia sobre o que eu dizia... Mas se eu falasse: "Bora, garotão"... Ah, o malandro logo se animava e sabia o que tinha de fazer. Corria pra porta e saltitava como uma perereca fujona. Mas ele me encarava com um olhar de pidão, acho que queria algo. Nunca o vira daquele jeito.
Fiquei por um tempo ali, parado... Com a TV ligada sem saber o que escolher para assistir... Passei o dia mexendo com uma coisinha aqui, outra ali. Quase não tinha reparado que não falei com ninguém. Não que me fizesse falta, mas daí a não receber uma mensagenzinha de bom dia, daquelas que a gente não suporta receber, mas que se mandam é por que nos lembram... poxa, me fez pensar... Mas eu também sou do grupo dos aue não mand, então meu coração me convenceu de que estava tudo bem. Acho que fui cansando de ser sempre aquele cara gente boa que procura pelos outros. De repente, num dia, parei de procurar e, coincidentemente, também parei de ser procurado. Pouco a pouco, fui sumindo... Fui virando uma silhueta triste no por do sol alheio... Enfim...
Já era madrugada... Um silêncio aterrador... Muito frio e ninguém me cobriu. Levantei desconfiado, um olho e meio aberto. Fui para o quarto. Ao deitar, senti a cama gelada, um frio insuportável... Sentira outros piores, mas aquele era diferente. Era inverno por dentro e por fora de mim, já tinha acostumado. Ali pus-me de novo a pensar sobre o que tanto homens que chegam aos 30 fazem a esta altura da vida... Eu... Apenas um colecionador de pensamentos, de trabalho e cansaços. Pouco animo.
Nero me acompanhou até sua caminha ao pé da porta, atento ao gotejar da chuva no parapeito da janela. Gota a gota... Um som nostálgico de infância... Logo me lembrou dos meus sonhos de menino... Do quão grande eu queria ser e de como imaginei que seria minha vida... Ah... deu até um quentinho no coração ao lembrar do meu menino que tanto sonhava. Pena que o tempo vai passando, a gente vai crescendo e pouco a pouco se esquecendo.
De repente, um latido tímido... Um som chamou atenção de Nero. Ele, como bom curioso, levantou as orelhas e eu ri da situação, pensando: "bichinho covarde. Nem se dá ao trabalho de ver o que era". Pelo vão da porta, um clarão na sala. Fiquei pensando da onde era a luz se eu havia desligado a TV. Levantei-me. Ja não sentia tanto frio como quando fui me deitar. Nero sequer se moveu ao me ver passar. Confesso que me senti um pouco mal, porque ele era meu fiel companheiro e nem se deu ao trabalho de me acompanhar. Meu corredor parecia mais longo que o de costume... Andei. Andei. Andei. E a impressão que tive era a de que não saia do lugar. Seria um sonho? Capaz... Há pouco estava pensando sobre baboseiras da vida adulta. Como seria? Nem tinha dado tempo de dormir ainda, eu saberia.
Ao chegar na sala dei de cara comigo mesmo, deitado e dormindo no sofá. Um sono prundo, expressão triste como se tivesse chorado por incontáveis dias... Como senti pena de mim ao me ver ali... Logo eu que tanto... Puxa... Minha vida passou como um flash e me deu um nó na garganta... O controle da tv no chão... Nero distante... A TV ligada... Uma luz intensa me absorvia... Não me restou mais tempo. Então fui.