Não ouvirei o mal

Eu já havia sido informado que a alfândega em Novomesto era rigorosa, mas não imaginei que revistassem a bagagem de todos os forasteiros recém-chegados; de mão, inclusive. O serviço em si era até rápido, e eu nada tinha a esconder - ou assim o pensava.

- Isso é algum tipo de fone de ouvido? - Questionou o agente alfandegário, abrindo uma caixinha de plástico branco, que eu tivera o cuidado de colocar num bolso da mochila que levava pendurada no ombro.

- Sim, são os meus AirPods - declarei, tentando parecer despreocupado.

- Você não pode usar isso em público, - alertou ele, expressão severa - ou poderá ser preso. E multado. Talvez, até mesmo deportado.

- Como é? - Perguntei estupefato. - Deportado por usar AirPods?

- Qualquer tipo de fone de ouvido - especificou o agente, recolocando a caixinha no bolso de onde a tinha retirado. - Vou lhe dar um formulário e você vai assinar, reconhecendo que foi informado e que está ciente do que poderá acontecer se transgredir a lei.

Por mais absurdo que aquilo parecesse, tive que assinar; a alternativa seria ficar no aeroporto, e pegar o primeiro avião de volta para casa. Eu agora estava oficialmente ciente de que usar fones de ouvido em público era um crime de extrema gravidade, e que inclusive autorizava que a polícia usasse força letal contra mim.

- Nenhum problema se eu não usar em público? - Indaguei.

- Desde que você esteja sozinho, entre quatro paredes, é da sua conta - foi a resposta seca.

Balancei a cabeça em concordância.

Depois de recolher minha bagagem e o que me restara de dignidade, saí do controle alfandegário e me dirigi ao exterior do aeroporto, onde havia uma área reservada para os motoristas de aplicativo aguardarem passageiros.

- Bom dia... Bashkim - saudei o motorista ao entrar no veículo que me havia sido designado.

- Bom dia, senhor - respondeu ele, olhando rapidamente para mim pelo retrovisor. - Hotel Severozahodni?

- Sim, por favor.

Saímos do aeroporto e pegamos uma via expressa rumo ao centro de Novomesto. O motorista não fizera menção de ligar o rádio do carro e eu aproveitei para perguntar:

- Fui informado de que vocês têm penas bem duras contra o uso de fones de ouvido... faz tempo que isso entrou em vigor?

- Desde que alguns espertinhos descobriram que podiam usar fones de ouvido para cometer crimes - declarou ele com ar cansado. - Faz uns seis meses.

- Mas... como assim? Ouviam algum mantra e entravam em transe, cometendo crimes? - Questionei.

- O senhor não é daqui, não é? - Redarguiu ele. E sem esperar pela minha resposta:

- Não sei como é lá na sua terra, mas aqui, para usar magia, as pessoas têm que falar o encantamento em voz alta... pois um espertalhão descobriu que gravar o áudio e mover os lábios em sincronia causava o mesmo efeito. Daí para começar a usar "lip sync" para cometer crimes, foi um pulo: as pessoas eram pegas de surpresa, e não tinham tempo de reagir.

- Ah, então foi isso - comentei. - Entendo agora porque as punições são tão severas. Bom, no meu país nós só lemos os encantamentos; eles não precisam ser ditos em voz alta.

- Nem quero imaginar o caos que seria se isso pudesse ser usado aqui - ponderou Bashkim.

- Essa é uma capacidade adquirida na primeira infância - tranquilizei-o. - Ninguém consegue aprender a técnica correta depois dos dois anos de idade.

- E como vocês conseguem se defender de ataques que não podem ouvir? - Indagou, curioso.

- Você provavelmente vai rir, mas... com fones de ouvidos. Ninguém circula por áreas muito movimentadas sem estar ouvindo mantras de proteção... e nos locais fechados, temos uma lei que obriga a execução de música de elevador todo o tempo. A música bloqueia todo tipo de encantamento nocivo.

- Isso é interessante - admitiu Bashkim. - Vocês encontraram uma solução que para nós, seria um crime.

- Assim é o mundo - filosofei.

Uma hora depois, já no hotel, desfiz a mala e peguei minha agenda onde eu anotara vários encantamentos práticos para influenciar os empresários com quem eu iria jantar naquela noite. Era o tipo de coisa perfeitamente inócua no meu país, mas aqui... não havia música de elevador nem fones de ouvido que detivessem minhas técnicas de persuasão em vendas.