Jai Guru Deva Om

Eu havia ido até o Centro resolver algumas questões do escritório, e o último lugar onde teria que passar era um cartório, na Cidade Baixa. Como eu estava na Cidade Alta e havia uma linha de ônibus para lá, achei melhor economizar o dinheiro do táxi e ir de ônibus, pois embora a distância não excedesse dois quilômetros, o calor da tarde desaconselhava ir a pé. Após uma espera relativamente curta, embarquei num ônibus velho e praticamente vazio, e lá fui eu sacolejando, sentado próximo à porta traseira para não demorar na hora de descer. Foi somente quando o ônibus chegou ao fim de uma ladeira e virou à esquerda, em vez de à direita para seguir para a Cidade Baixa, que percebi estar no ônibus errado. Imediatamente, dei sinal.

- Vai descer aqui? - Gritou algo desnecessariamente o motorista.

- Vou! Peguei o ônibus errado! - Gritei de volta.

O veículo parou no meio de uma ladeira e eu desci. Só então entendi o que o motorista quisera dizer com "aqui". Olhei ao redor, enquanto o ônibus subia, de volta à Cidade Alta. Embora a tarde fosse pelo meio, a rua, comercial e com um casario antigo, cujo calçamento de paralelepípedos parecia jamais ter recebido qualquer manutenção, estava absolutamente deserta. As lojas e outros estabelecimentos davam sinais de abandono, com pintura desgastada e sinais de ferrugem nas portas de ferro. Mas lá embaixo, no início da ladeira, havia cor, som e movimento: duas garotas, adolescentes, estavam sentados à sombra, na calçada, conversando animadamente e rindo. Como eu teria que passar por ali para continuar meu percurso para a Cidade Baixa, comecei a descer. Imediatamente, elas pararam de falar e me encararam, com curiosidade.

- Cansaram de andar? - Perguntei, ao me aproximar.

Ambas estavam descalças, as sandálias de plástico barato sobre a calçada, os pés empoeirados. Sorriram, sem medo. Tinham aquele tom de pele acobreado e os cabelos longos e crespos que eu somente vira entre o povo deva. Mas o que faziam duas jovens devas ali, praticamente no centro da cidade?

- Vocês são devas? - Acrescentei à pergunta anterior.

Os sorrisos se transformaram numa expressão desafiadora.

- Eu sou Nisansala, e essa é minha amiga Sudammi - disse a que parecia ser a mais velha, talvez 16 anos. - Nós somos devas.

- Estamos esperando alguém que nos dê carona para a Cidade Alta - disse Sudammi. - Mas só aquele ônibus velho passa por aqui.

- Não seria mais simples pegar o ônibus? - Questionei. - Esse lugar é muito deserto, pode aparecer alguém mal-intencionado...

- Nós não temos dinheiro para o ônibus - admitiu Nisansala. - E podemos ficar invisíveis para pessoas mal-intencionadas.

- Bem, é um alívio saber que não sou mal-intencionado - agradeci. - Mas me preocupa saber que vão continuar sentadas aí, pois dificilmente algum automóvel vai subir essa ladeira esquecida. Querem o dinheiro da passagem?

- Aonde você vai? - Replicou Nisansala.

Não era segredo, portanto respondi:

- A um cartório de registro de imóveis... tenho alguns assuntos legais a tratar, do meu escritório. Não é longe, creio que menos de um quilômetro daqui.

- Você é advogado! - Exclamou Sudammi, batendo palmas.

- Savin Herath, meninas - identifiquei-me, juntando as mãos e inclinando a cabeça. - Negócios Imobiliários.

- Savin Herath, nós íamos procurar um advogado na Cidade Alta - revelou Nisansala, repetindo a minha saudação. - Deve ter sido Buda quem mandou você!

- Acho que foi mais a minha falta de atenção mesmo - ponderei. - Mas, digamos que tenha sido Buda. O que vocês querem com um advogado?

- Nós queremos comprar essa rua... com todas essas casas - declarou candidamente Nisansala.

Olhei para os sobrados velhos ao redor. Muitos tinham placas de "vende-se", desbotadas pelo sol e pela chuva.

- Mas como vão comprar todos esses imóveis, se não tem sequer dinheiro para o ônibus? - Questionei, testa franzida.

- Não aceitam ouro no ônibus - explicou Sudammi com ar maroto.

Bem, aquilo fazia sentido. Desde que, claro, elas pudessem comprovar que tinham ouro suficiente para comprar todos os imóveis da rua.

- Temos que assinar um contrato, antes que eu possa aceitar representar vocês... e creio que ainda são menores de idade, não é? Eu teria que falar com os seus pais.

Nisansala e Sudammi entreolharam-se.

- Você poderia voltar amanhã... nessa mesma hora? - Indagou Nisansala.

Consultei o relógio.

- Creio que sim... acho que vou ter que pegar o mesmo ônibus.

- Estaremos esperando - prometeu Sudammi.

* * *

Na tarde seguinte, peguei o mesmo ônibus velho na Cidade Alta, o mesmo motorista ao volante. Ele me encarou surpreso:

- Ei! Você não é o sujeito que desceu ontem na ladeira Tirittuvam?

- Eu mesmo - assenti. - Como me reconheceu?

- Dificilmente alguém desce ali - comentou, enquanto começava a tomar o rumo à Cidade Baixa e eu me sentava no banco atrás dele. - Por isso sempre pergunto quando alguém diz que vai descer naquela parada.

- Fiquei de encontrar duas clientes - justifiquei-me.

- As devas? - Ele me encarou pelo retrovisor com o cenho franzido.

- Elas mesmas. Como sabe?

- Faz mais de cem anos que elas aparecem naquela esquina, sempre dizendo que tem ouro para comprar a rua inteira. Mas como são menores de idade, pedem para o eventual interessado acompanhá-las até o lugar onde está o pai delas...

Ergui os sobrolhos.

- E o que acontece com quem aceita?

O motorista me deu um sorriso sardônico pelo retrovisor.

- Como vou saber? Nenhum desses jamais voltou...

O ônibus dobrou à esquerda para voltar à Cidade Alta. Olhei para a esquina, onde Nisansala e Sudammi haviam estado no dia anterior, e não vi ninguém.

- Você vai descer? - Perguntou o motorista.

- Não, vou voltar para a Cidade Alta! - Decidi-me subitamente.

O ônibus continuou a subir a ladeira, sacolejando. Fiquei olhando para trás, até que a esquina desaparecesse numa curva. Eu deveria encarar aquela ausência como um bom sinal? Será que as devas haviam reconhecido que eu era uma boa pessoa, e simplesmente preferiram não aparecer, para que eu pudesse seguir meu caminho? Jamais saberei.

Nas vezes subsequentes em que precisei me deslocar até a Cidade Baixa, peguei um táxi.