A vazante no Rio Guaporé estava na segunda quinzena do mês de Maio, e as primeiras fímbrias de areia, branquíssimas, das futuras praias começavam a pontilhar a margem esquerda do imponente rio. Por cima das altas copas das castanheiras, o sol do final da tarde deixava o horizonte vermelho rubro por detrás do perfil da floresta. E do alpendre da varanda do sobrado, Dona Clotilde, a Tia Clô, olhava embevecida a aquarela multicor que a Bacia do Rio Guaporé lhe proporcionava.

 

Dona Clotilde e/ou Tia Clô, jeito carinhoso e respeitoso que os “curumins(1)” da Vila Três Marias, um acanhado povoado à margem direita do rio a chamavam. Tia Clô era uma professora aposentada que, viúva e sem filhos, para ocupar o tempo, candidatou-se como professora voluntária no Barco Escola de um programa de alfabetização de jovens e adultos de uma ONG patrocinada por uma empresa de cosméticos. Com o tempo, nas idas e vindas pelas vilas ribeirinhas, Tia Clô acabou encantando-se com a Vila Três Marias, e lá fixou residência.

 

A vila localizada no alto de uma barranco ornado com três frondosas castanheiras enfileiradas na área central de uma pequena baía, origem do nome da vila, proporcionava um cenário paradisíaco por todo o Verão, época da vazante dos rios amazônidas.

 

Tia Clô, nas tardes quentes do verão amazônico, quando dava aulas de reforço para a criançada, os curumins e "cunhantãs(2)", sempre introduzia noções de boas maneiras, gentilezas e amor para com o próximo. Os caboclos ribeirinhos, uma miscelânea de descendentes dos destemidos "Soldados da Borracha(3)", bolivianos e silvícolas, com o tempo, após a chegada de Dona Clotilde à vila, começaram a perceber que os curumins e cunhantãs, estavam mais gentis, solidários e educados. Já não eram mais pequenos selvagens, quase indomáveis. Inclusive, nos banhos de rios e igarapés, quando brincavam de "cangapés(4)" - brincadeira proibida pelo Administrador da Vila -, e um deles era atingido mais seriamente, todos acorriam para ajudar o amigo lesionado.

 

As noções religiosas, Dona Clotilde deixava ao encargo do Padre Belmondo, missionário francês que a cada dois ou três meses, subia o rio em catequese, casando os amancebados e batizando os curumins e cunhantãs dos casais e de mães solteiras, genitoras dos “filhos e filhas de boto(5)”. Nessas ocasiões, nos intervalos de casamentos, batizados e aconselhamento matrimonial, o diligente francês com o seu português estropiado, dava aulas de catecismo para a criançada.

 

O Padre Belmondo para ilustrar as noções de Céu, Purgatório e Inferno, costumava pendurar nos caibros que sustentavam o teto da Casa de Farinha da Vila - onde as crianças e adolescentes se reuniam para ouvirem os catecismos -, diversos cartazes com cenas dos três níveis destinados às almas que partiam “dessa para melhor”, dependendo das ações praticadas na vida terrena.

 

Nessas ocasiões, Padre Belmondo desenrolava um grande cartaz com cenas idílicas do Paraíso e com um sorriso beatífico e sotaque carregado de “erres”, dizia para a platéia de caboclinhos e caboclinhas que as “crrrrianças” que praticavam boas ações, não faziam malcriações para os pais, obedeciam aos mais velhos e rezavam o “Pai Nosso” e o “Credo” antes de dormir, quando morriam, iam viver felizes para sempre, nadando, pescando e brincando juntos com Adão e Eva. Alguns curumins e cunhantãs sorrindo e batendo palmas, murmuram entre si que estavam fazendo “tudo direitim”, do jeito que o Padre ensinava; outros perguntavam:

 

-Padre Belomundo, e se nóis num fizer tudo direitim, márs na hora de drumí pidí perdaum, vai pru Paraíso ô naum?

 

O catequista sorria e dizia: “Depende, crriança! Se pedirrr perrrrdão com o corrrrração, não perrrde o lugarrr no Céu!”

 

Todos sorriam aliviados… Por pouco tempo! Logo em seguida, o padre fazia expressão de preocupado, desenrolava um cartaz que mostrava cenas de pessoas sofrendo em meio a labaredas; e do meio daquele fogo medonho, alguns felizardos eram puxados para cima por anjos louros que os livravam do sofrimento. Então o padre, apontando para os sortudos que eram erguidos pelos seres angelicais, dizia que essas almas tinham limpado seus pecados no Purgatório e por isso estavam sendo levadas para o Paraíso.

 

De repente, toda a turma ficou em silêncio e ficou olhando para o cartaz que mostrava cenas dantescas de capirotos espetando com enormes azagaias, um monte de infelizes sendo cozidos em caldeirões ferventes.

 

Em seguida, o Padre Belmondo, ostentando na face um misto de raiva e desprezo, agitava o cartaz diante da platéia de curumins e cunhantãs de olhos arregalados de terror, e peremptório, exclamava sibilando cada palavra:

 

-E aqui, é o destino final dos pecadorrrres; de quem tem o corrrração pesado de maldades.

- o -

O catecismo chegou ao fim, o padre dando as costas para a platéia, acenou liberando-a para as brincadeiras costumeiras dos pequenos caboclos numa manhã de sol de domingo. Tomar banho no rio, jogar bola, brincar de bonecas, subir nas árvores frutíferas ou simplesmente pescar.

 

Os pequenos ribeirinhos que tinham o costume de sair correndo e gritando de alegria uns com os outros, naquela manhã, deixaram a casa de farinha arrastando os pés, caminhando de ombros caídos e mudos. De longe, a impressão que dava era que estavam todos com "panema(6)".

- o -

Na tarde da Segunda-Feira, na mesma Casa de Farinha onde Dona Clotilde ministrava as aulas e após o “Boa Tarde, Tia Clô!” costumeiro e ao término da chamada nominal dos alunos, um curumim de nome Mundico, sentado na fileira da frente - lugar cativo dos alunos mais agitados e bagunceiros -, levantou a mão, pedindo permissão para falar.

 

Intrigada, Tia Clô autorizou-o a levantar-se para falar. Mundico, em pé e mãozinhas para trás, ficou lá, parado, mudo e olhos arregalados, parecendo uma "gia(7)"; o que deixou a bondosa e paciente professora mais intrigada ainda. Afinal, o irrequieto garoto que nunca pedia permissão para nada e falava pelos cotovelos, estava pálido e com o lábio inferior tremendo. Visivelmente amedrontado.

 

Dona Clotilde, pacientemente, semi levantou as mãos fazendo sinal para a turma ter paciência com o estranho e longo silêncio de Mundico “Periquito”, apelido que os demais alunos resolveram alcunhar o colega, dada a sua notória inquietação.

 

Mundico "Periquito", parecendo uma "osga(8)", abrindo e fechando a boca, e com o olhar fixo na Professsora, por fim, falou de roldão com voz quase inaudível:

 

-Tia Clô, eu num quero ir pru inferno, num sabe?

 

Dona Clotilde, como sempre fazia quando era pega de surpresa, arqueou as sobrancelhas e projetou a cabeça para a frente.

 

-Que conversa esquisita é essa, Raimundinho? Quem foi que disse que você vai para o inferno, menino?

 

-O Padre Belomundo, Tia! Ele dixe qui'quém faiz mardade vai direto pru inferno, num sabe?

 

Dona Clotilde tossiu discretamente para disfarçar o sorriso que se insinuava nos cantos dos lábios, e ponderou:

 

-Raimundinho, antes de mais nada, o nome do padre é: "Padre Belmondô", escreve-se "Belmondo", mas pronuncia-se "Belmondô", em razão do nome ser de origem francesa. Em segundo lugar, o que foi que você fez de tão ruim para o Padre dizer que você vai para o inferno, meu anjo?

 

Entrelaçando e torcendo os dedos, cabeça enterrada nos ombros e quase chorando, Mundico "Periquito" tentou uma explicação com jeito de justificativa:

 

-Num vê, Tia! Qui'quém mandô o Zeca Quati prú fundo das rede cum a mulêra amassada fui'eu, Tia! E agora, ele tá lá, morre num morre, Tia!

 

-Que história mais sem sentido é essa, menino? Pelo que eu soube, o José Elias feriu a cabeça em uma pedra, quando vocês tomavam banho no rio. Ele pulou de ponta-cabeça na água e chocou-se com uma pedra, não foi?

 

-Foi naum, Tia! Nóis num contô a verdade verdadêra, pruquê nóis ficô tudo cum medo, num sabe?

 

Mais preocupada que irritada, Dona Clotilde inquiriu o aluno novamente, enquanto estranhava o silêncio sepulcral que pairava sobre a turma de alunos depois da última fala do Mundico "Periquito".

 

-Raimundinho, pegue aquele tamborete e venha sentar-se aqui ao meu lado. - com os pés arrastando no chão de "tabatinga(9)", Mundico pegou o pequeno banco de madeira e sentou-se ao lado da Professora - E agora, conte para mim, a "verdade verdadeira" sobre o suposto acidente com o José Elias.

 

-Foi anssim, Tia… O Chefe da Vila num qué'qui nóis brinca de cangapé uns cuns'otro, pruquê nóis véve se machucano nas boca, nos braço ô nos ômbru. Se ele vê, bóta nóis de castigo e inda rálha cum nossos pai. E aí, quano nóis chega in casa, nóis leva pêia deles, num sabe?

 

-Sei! Mas seja breve com sua história, menino!

 

-Apôis, Tia! Quano num tem nenhum pai ô irmão grande oiando na bêra do barranco, nóis brinca de cangapé. E aí, Tia, isturdia nóis 'tava brincano de cangapé, e quano dei uma cambaiota na flô d'água, qui'é pra dá mais ligerêza nas perna, foi bem na hora qui o Zeca Quati boiô do mergúio dele, bem na minha ilharga, num sabe? E aí, Tia, meu carcanhar pegô bem na molêra dele… A pernada foi taum grande qui afundô o côro da molêra do póbe do Zeca Quanti. E aí, Tia, ele afundô… Foi pru fundo do rio! Se nóis num mergúia atráis dele, ele tinha murrido, Tia!

 

-E por que ninguém ficou sabendo dessa tragédia, Raimundinho?

 

-É qui nóis ficô tudo cum medo, Tia! E aí, nóis inventô qui ele bateu a cabeça numa pedra, num sabe? E agora ele tá lá, morre num morre e o curpado sô'ieu, Tia! Será pur isso qui'eu vô pru inferno, Tia?

 

Após as justificativas do aluno, e antes de tentar acalmar sua evidente aflição, Dona Clotilde, com pesar, analisou: “Apenas duas horas em dois dias da semana, eram insuficientes para mudar o vocabulário caboclo daquelas crianças” - decidiu então que iria falar com o Administrador do Distrito para aumentar, senão as horas de aulas, pelo menos os dias de aula na semana.

 

-Acalme-se, Raimundinho! - Dona Clotilde olhou nos olhos do amedrontado menino e para cada criança sentada em meia-lua à sua frente, suspirou profundamente procurando uma forma lúdica para explicar para a turma, que ninguém era castigado para passar a eternidade no inferno por ter cometido um pecado, ainda que involuntário.

 

Na pequena pausa da Dona Clotilde, Mundico Periquito, com os olhos rasos d’água, esfregava as mãos na lateral do calção, esperando um possível auxílio da Tia Clô.

 

Por fim, a simpática professora, lembrou-se que na "Psicostasia(10)" constava o mito d o Julgamento das Almas na Sala das Duas Verdades, presidida pela "Deusa Maat(11)", uma das principais deusas do panteão egípcio, de acordo com a Teogonia do Egito Antigo, que talvez, apenas talvez, acalmasse o menino e o resto da turma. Todos, sem exceção, com preocupante expressão de pavor, tinham os olhos fixos e esperançosos na Tia Clô.

 

Dona Clotilde tinha lá suas esquisitices. Devorava com sofreguidão toda a literatura sobre mitologias grega, romana, egípcia, celta, maia, asteca, inca, eslava, incluindo no rol, o folclore nacional. Outra esquisitice que seria bem estranha aos olhos dos ribeirinhos, e que Tia Clô guardava bem lá no íntimo, e que disfarçava muito bem, mantendo um relacionamento extremamente cortês com os religiosos em geral, era sua forte tendência ao racionalismo. Tênue fronteira com o ateísmo.

 

A bondosa Mestra, perdida em seus devaneios, de repente percebeu que as crianças em completo mutismo, a olhavam fixamente, esperando um resgate do rio de aflição em que elas e o colega Mundico se afogavam. Ainda concatenando as ideias, a professora esfregou as mãos úmidas nas laterais da saia rodada, e finalmente falou:

 

-Crianças… Crianças… Vou lhes contar uma história que se passa aqui na nossa Amazônia, e que é muito parecida com uma lenda de um povo muito antigo que viveu no Antigo Egito. Aquela terra que não tem as florestas que nós temos! Lá, só existe areia, e é tudo deserto! Lembram de uma figura que mostrei para vocês no mês passado, quando disse que nem todo mundo vive rodeado de matas, rios, igarapés e lagos como existe na Amazônia? - incontinenti, a professora caminhou até uma sacola cheia de materiais diversos e pegou uma pequeno cartaz onde estava estampada uma paisagem mostrando uma caravana de camelos, tendo ao fundo, o contorno de três pirâmides no meio de um mar de areia - Pois é! Neste lugar, uma lenda tenta explicar para onde todos vão depois da morte. Para um bom lugar ou para um lugar ruim. Ou então, como diz o Padre Belmondo, para o Céu ou para o Inferno. A mesma coisa acontece aqui nas nossas matas, na nossa Amazônia, só que de maneira diferente. Aqui, são os nossos Espíritos Encantados que fazem todas as tarefas.

 

Após solicitar que o garoto Raimundo fosse até o pote no canto da Casa de Farinha para beber um pouco de "aluá(12)" para se acalmar, Dona Clotilde pegou um tamborete e postou-o diante da turma de alunos, sentou-se, colocou as mãos sobre os joelhos e começou a narrativa:

 

-Para melhor compreensão de vocês sobre essa questão de "Céu", "Purgatório" e "Inferno", vou explicar como é feito o Julgamento das Almas na nossa maravilhosa e misteriosa Amazônia. Está bem?

 

As crianças sorriram um pouco mais relaxadas e cada um procurou se acomodar da melhor forma possível. Alguns resolveram ficar de cócoras, outros sentaram sobre os calcanhares, e alguns mais, simplesmente continuaram sentados de pernas cruzadas com os cotovelos apoiados nos joelhos e mãos no queixo.

 

Dona Clotilde sorriu complacente para a infante platéia, e perguntou:

 

-Quem conhece a Yara, uma encantada que reina nos rios e nos lagos, levanta a mão! Imediatamente todos assentiram. -E o Curupira, o Mapinguari, a Matinta Perera e o Boto Tucuxi e Boto Cor de Rosa? - novos acenos em concordância. -E o Tamba-tajá? - mais acenos concordando.

 

Depois de uma pequena pausa, a Tia Clô suspirou profundamente e iniciou a explanação:

 

-Vocês sabem que as pessoas quando nascem, são parecidas com as árvores e as plantas... Elas crescem, envelhecem e um dia morrem! Sempre foi assim desde o início dos tempos! É o que acontece com os nossos avós… Eles vão ficando velhinhos, velhinhos… e um dia morrem!

 

Nesse momento, uma das meninas sentada em um canto - sem levantar a mão para pedir permissão -, comentou olhando em volta:

 

-Mês qui passô, foi anssim cum a coitada da minha Vó, num sabe, Tia Clô? Nóis chorô foi munto!

 

-Pois é! É isso que um dia acontece com todas as pessoas. E às vezes, acontece também com as crianças… Mas o importante nessa história, é o que acontece lá na "Oca(13)" da Rainha dos Lagos e dos Rios. Vocês sabem, é claro, que o Palácio da Yara fica no fundo do Lago do Espelho. No entanto, para escolher os felizardos, ou sortudos, como vocês dizem, a Yara possui uma Oca na margem do lago. E na frente da Oca, existe um terreiro bem grande e espaçoso. E no centro do terreiro, ela plantou um majestoso Tamba-tajá com apenas duas folhas, cada uma do tamanho de uma braçada e da altura do peito de um homem.

 

De súbito, a explanação da Tia Clô foi interrompida pela voz miúda e acanhada de uma menininha magra ao extremo, acocorada na última fileira da turma, de nome Maria José, mas que preferia a denominação de Mazé, acrônimo usado carinhosamente pelos pais. No entanto, os curumins da vila, devido a acentuada esqualidez da menininha, a apelidavam jocosamente de "Mazé Caniço".

 

-Tia Clô, o qui'é "majistoso"?

 

Dona Clodilde sorriu com indulgência, e corrigindo a menina ao mesmo tempo em que explicava para ela e os demais, o significado de "majestoso".

 

-Mazé, minha querida, o nome correto é: ma-jes-to-so! - Tia Clô falou acentuando bem devagar cada sílaba - E "majestoso" significa imponente, grandioso, que aparece mais que os outros, entenderam? Por exemplo, o Cacique da vizinha Aldeia dos Aruãs, quando em dia de festa na Vila, não vem com o cocar de penas vermelhas de arara, o corpo pintado de urucum e o rosto pintado de tinta preta de jenipapo, não é? Vem mais emproado que juriti querendo namoro? Bonito que só… Pois é, majestoso é isso!

 

Percebendo que despertara a atenção da turma, imóvel e em completo silêncio, Tia Clô começou a explicação dizendo que o ritual do julgamento das almas na Amazônia é marcado por elementos característicos da região.

 

Como por exemplo, a margem do lago onde está localizada a Oca da mais poderosa encantada da Amazônia, fica à sombra das milenares sumaúmas ladeadas pelas majestosas e centenárias castanheiras, e pelos imponentes angelins. E no terreiro da Oca, os espíritos dos Avôs dos Bisavôs dos povos amazônidas se reúnem em um círculo sagrado, entoando cânticos em línguas esquecidas e dançando ao ritmo dos tambores sagrados. Os seres encantados da floresta, como o bondoso Curupira, o malvado Mapinguari, a Cobra Norato, o Boitatá e o Boto, observam silenciosos, prontos para testemunhar a justiça divina ser feita.

 

No momento do julgamento, cada alma é submetida a uma série de provações que testam a pureza de seu coração e as boas ações de sua vida na Terra. Na balança da justiça da Rainha dos Rios e dos Lagos, cujos pratos são as duas folhas de Tamba-tajá.

 

Em uma das folhas, o Curupira, seu fiel escudeiro, coloca uma pena da ponta da asa do Uirapuru, o pássaro mensageiro da Rainha e fiel companheiro do escudeiro; essa pena tem o peso do Coração da Yara. Na outra folha, o Curupira deposita as ações de cada alma que estavam embrulhadas num saco de sernambi dentro do coração do vivente que partiu dessa para melhor. O fiel da balança é o perfeito equilíbrio das folhas, que oscilam para mais ou para menos, revelando a verdade que está além das palavras e aparências. Yara, com sua sabedoria ancestral, lê nos olhos daqueles que comparecem diante dela a história de suas vidas, sem julgamento, mas com compaixão e conhecimento de Encantada.

 

Aqueles corações cujas almas foram consideradas puras e dignas por terem pesos equivalentes - depois de uma pequena pausa enquanto observava os alunos, Tia Clô esclareceu que a palavra "equivalente" era a mesma coisa que "iguais" - e/ou que pesaram menos que a pena, são conduzidos pelas águas cristalinas dos rios amazônicos para o paraíso das matas, onde encontrarão paz e harmonia eternas ao lado dos espíritos encantados da floresta. Já os que carregam o peso da injustiça e da maldade, em razão dos corações serem mais pesados que a pena do Uirapuru, são condenados a viverem como escravos nas Ocas dos Mapinguaris, das Matintas Pereira e dos Boitatás até que se arrependam das maldades de suas ações, encontrem redenção e possam renascer em um novo ciclo de existência. Uma coisa parecida com o que acontece com as sementes das árvores.

 

Assim, o julgamento das almas na Amazônia, inspirado pela figura de Yara e pelos seres míticos que povoam a região, é mais do que um simples ato de justiça divina. É um lembrete de que todos os seres vivos dependem uns dos outros, bem como da importância de viver em harmonia com a natureza e com o universo. Nas profundezas da floresta amazônica, nosso Lar, o tempo e o espaço ficam entrelaçados uns aos outros, assim como os cipós dependem das árvores, as árvores por sua vez, também dependem dos cipós. E o julgamento das almas é uma celebração da vida, da morte e do eterno ciclo de renovação que sustenta o mundo. Entenderam, crianças?

 

Mais uma vez, a menina Mazé levantou a mãozinha, dando a entender que queria falar. Tia Clô assentiu com uma leve inclinação da cabeça.

 

-E o coitadim do Mundico "Periquito", acuma é qui'ele fica, Tia? Ele vai morá cum Mapinguari ô cum'a Matinta Perera, é?

 

-Mazé, meu amorzinho! O nosso Raimundinho, assim todos desejamos, ainda vai viver muitos e muitos anos… E quando chegar a vez dele partir, com certeza, ele vai morar junto com os encantados da floresta. Quem sabe até vai passear montado num caititu junto com o Curupira , feliz da vida! Afinal, todos nós vimos que ele está mais que arrependido, também está com muita vergonha pela mentira que vocês todos inventaram, não é mesmo Raimundinho? Não é, turma?

 

Em meio ao zum zum zum de assentimentos do grupo de curumins e cunhantãs, Tia Clô conseguiu distinguir a voz firme, quase tonitruante de Mundico "Periquito", que peito estufado, parecendo uma juriti, exclamou de roldão:

 

-Ói, Tia Clô! Hoje mermo, quano sair d'aula, dô um pulo na casa do Chefe da Vila, e conto tudim pr'ele, num sabe? E prumeto pra Sinhóra qui vô fazê de tudo pru meu coração pesá menó qui um'a pena, num sabe?

 

E desde então, o curumim Raimundo virou o Anjo da Guarda da Vila. Ajudava, sem distinção, do bebê ao ancião. E quando indagado sobre a razão de tanta bondade, com um sorriso beatífico, respondia:

 

-Quero ter'um coracão de pena, num sabe?

 

E aí, de um dia para o outro, Mundico "Periquito" morreu, e como uma Fênix, renasceu como Mundico "Coração-de-Pena".

 

Para terminar o causo de Mundico "Coração de Pena", esperamos que o eco dos tambores sagrados e o canto dos Espíritos Encantados da floresta guiem aqueles que buscam a justiça e a redenção nos caminhos intrincados do julgamento das almas na Amazônia.

 

Glossário

 

01 - Curumim: Amazônia - o mesmo que criança, menino, garoto (palavra de origem tupi “kuru’mi”).

02 - Cunhantã: Amazônia - o mesmo que menina, garota (idem - “cunhã-antã”).

03 - Soldado da Borracha - Na Segunda Grande Guerra, cerca de 60 mil brasileiros (95% nordestinos) foram enviados para a Amazônia com a missão de extrair látex, seiva das seringueiras. Insumo utilizado como material isolante pelos Aliados na luta contra o nazifascismo. Em contraponto aos Pracinhas que foram para a Europa, esses brasileiros ficaram conhecidos como “Soldados da Borracha”.

04 - Cangapé - Ato de mergulhar e dar uma cambalhota com uma das pernas batendo sobre a superfície da água. Brincadeira perigosa, vez que de vez em quando, ocasiona sérios hematomas entre os participantes.

05 - Filho do Boto - Nas comunidades ribeirinhas da Amazônia, filhos/as sem pai conhecido, são denominados “Filho-de-Boto”, que de acordo com as lendas ribeirinhas é um encantado famoso por seduzir as caboclas donzelas.

06 - Panema - Má sorte, azar, tristeza, infelicidade.

07 - Gia - Sapo de pequeno porte, pele translúcida e olhos grandes e negros e muito comum nos banheiros e áreas úmidas nas casas ribeirinhas dos rios amazônicos. Costuma ficar parada e de olhos fixos.

08 - Osga - Lagartixa com tamanho médio de 8,5 cm, conhecida como osga-moura e/ou lagartixa-comum, tem o aspecto achatado, cabeça grande bem destacada do corpo, com olhos grandes e redondos.

09 - Tabatinga - Argila mole e untuosa. Quando misturada com outros tipos de argilas, é utilizada para solidificar o piso das casas ribeirinhas.

10 - Psicostasia - Cena descrita no Livro dos Mortos, a Bíblia dos habitantes do Egito Antigo, que retrata a Cerimônia de pesagem  do coração dos mortos no Tribunal da Deusa Maat.

11 - Maet - (Deusa Maet, pronuncia-se “Maat”) Os habitantes do Antigo Egipto acreditavam na reencarnação. Suas ações terrenas eram julgadas no Tribunal da Deusa Maet, onde seu coração era colocado no prato de uma balança, tendo como contrapeso uma pena representando o coração da deusa. Se o coração pesasse mais que pena, o morto não reencarnava.

12 - Aluá - Bebida fermentada refrigerante de origem afro-indígena (proveniente da língua Quimbundo: "Ualuá"). A bebida é feita a partir da fermentação de grãos de milho e/ou cascas de abacaxi fermentados em potes de cerâmica.

13 - Oca - Um dos principais tipos de habitação indígena no Brasil. O termo é oriundo da família linguística tupi-guarani.

 

(*) Livre adaptação do Tribunal do Bem e do Mal da Deusa Maet, de acordo com a teogonia do Egito Antigo, conforme descrição no Livro dos Mortos.