O urco

Kobi deixou Skyla falar, porque era bom ouvir a voz dela de novo. Mas não estava inclinado a aceitar a oferta que ela tinha a lhe fazer.

- Fico grato pela lembrança, Skyla... de verdade... mas porque achou que eu seria um bom tutor para um cão do inferno?

Do outro lado da linha, ela riu. A mesma risada musical de que ele se lembrava tão bem.

- Não é um "cão do inferno", Kobi! É um urco das profundezas...

- Das profundezas do inferno, sei - atalhou o rapaz. - Mas pelo que li, esses bichos precisam de muito exercício, se não, tocam fogo na casa inteira. Francamente, não sei se ia ter todo esse tempo e disposição.

- Kobi, é só uma atividade temporária, enquanto o governo decide o que vai fazer com todos os bichos do criptozoológico clandestino de Micah Chapman - insistiu Skyla. - Eles estavam sendo mantidos em condições degradantes, você deve ter visto pela TV...

- Vi sim - assentiu Kobi, já encaminhando a conversa para um término. - Mas mesmo que seja temporário, um urco ou mesmo uma das salamandras de fogo pequenas, dão um trabalho danado.

Skyla, contudo, ainda tinha um argumento:

- Kobi, o governo vai pagar para que receba o pobre animal - confidenciou ela. - Trezentas libras por semana. Mais um saco de carvão de 25 kg, que deve durar pelo menos um mês.

Subitamente, Kobi começou a achar a proposta interessante.

- Trezentas libras... só pra guardar o bicho?

- Só pra "guardar" não - corrigiu-o Skyla. - Você deve alimentá-lo e, principalmente, passear com ele. Todos os dias, faça chuva, faça sol. Sábado, domingo, feriado.

Kobi estava desempregado. Ganhar apenas para passear com um criptocão não parecia assim tão ruim, afinal. Ele acabou por aceitar a oferta.

* * *

Ao ouvir a campainha, Kobi abriu a porta da casa de vila onde morava. Na viela em frente, um furgão cinza do Departamento de Criptzoonoses estava ocupando quase que toda a largura da via. O motorista, um tipo de meia idade usando macacão azul, desembarcou, uma prancheta com um formulário numa das mãos. O ajudante já havia aberto a traseira do utilitário e estava descarregando uma grande caixa cinza de transporte de animais, dentro da qual vislumbrou um vulto preto e hirsuto.

- Kobi Rees? - Indagou o motorista.

- Eu mesmo - aprumou-se Kobi.

- Assine na linha pontilhada - indicou o motorista, estendendo a prancheta e uma esferográfica. - Você está recebendo o urco e 25 kg de carvão.

Kobi assinou, já pensando quando receberia o cheque do governo. Assim que a entrega fosse confirmada, havia lhe prometido Skyla.

- Certo - disse o motorista, entregando-lhe um folheto e o canhoto do formulário. E virando-se para o furgão, onde o ajudante acabara de entrar para arrumar a carga:

- Ei, Robbie! Pode trazer o carvão!

O ajudante desceu com um saco nas costas e depositou-o aos pés de Kobi.

- Eu vou trazer o cão do inferno e você dá um pedaço de carvão pra ele se acostumar com o seu cheiro - sugeriu o ajudante.

- É um urco - corrigiu-o gentilmente Kobi.

- Chame do que você quiser - replicou o ajudante, dando de ombros.

* * *

Kobi estava cansado. Se a ideia fora entrar em forma passeando com o urco, ele já estava a ponto de pedir férias. No folheto de instruções que o motorista do furgão lhe entregara, recomendava-se um mínimo de quatro horas diárias de caminhada com o animal. Mínimo, ressalte-se. "Se você não gastar a energia térmica do urco, ele poderá involuntariamente atear fogo na sua casa", alertava o folheto em letras vermelhas maiúsculas, sublinhadas. Curiosamente, isso não parecia ter relação direta com a quantidade de carvão que o bicho comia, e o urco até que comia pouco para um animal que pesava cerca de 40 kg e era praticamente puro músculo.

- Você é um bom garoto - admitiu Kobi, preparando-se para sair com o urco certa manhã. - Mas confesso que dá um trabalho danado.

A casa vivia cheia de cinzas que o urco soltava ao se sacudir, algo que fazia com certa regularidade. Felizmente, Kobi conseguira convencê-lo a não dormir na cama com ele, pois além de ocupar muito espaço, o urco emitia um calor que, no verão, não permitia que se ficasse muito tempo em sua proximidade. No inverno, talvez pudesse tolerar que o animal subisse na cama e economizaria na calefação, pensou Kobi. Isso depois que se acostumasse com o discreto cheiro de enxofre que ele exalava e que o folheto de instruções alertava que não saía mesmo com banho. Aliás, segundo informava o folheto, banhos eram desnecessários; no seu ambiente natural, o urco costumava se refestelar em rios de lava.

Na vila, todos já haviam se acostumado com o urco e não lhe davam mais muita atenção, até porque o animal era sociável, apesar do seu grande tamanho e aparência tenebrosa. Nas ruas do bairro, contudo, pessoas costumavam mudar de calçada ao vê-lo aproximar-se, mesmo sendo mantido na guia e com focinheira. Cães comuns mantinham uma respeitosa distância, quase sempre com o rabo entre as pernas, enquanto ele passava.

E foi durante um destes passeios que Kobi encontrou Hamish, um ex-colega de trabalho.

- Ei! Você conseguiu! - Disse Hamish ao vê-lo com o urco.

- Tenho meus contatos - redarguiu Kobi sorrindo.

- Aquela sua ex-namorada que trabalha no governo, não é? - Antecipou Hamish. - Sorte sua!

- Só que está me dando mais trabalho do que eu gostaria - admitiu Kobi.

E contou do cansaço que as quatro horas diárias de caminhada provocavam.

- Uau, cara! Quatro horas! - Admirou-se Hamish. - Mas devem te pagar bem por isso, não é?

Kobi ia admitir que sim, mas uma súbita ideia lhe passou pela cabeça.

- Você ainda tá parado? - Questionou.

- Ainda - admitiu Hamish, desconsolado. - Parece que, fora trabalhar pro governo, não sobrou muito emprego nessa cidade.

- Sei bem como é - admitiu Kobi. - Olha, esse trampo é temporário, mas talvez eu possa terceirizar uma parte dele pra você... que tal ganhar cinquentinha por semana?

Hamish enfiou os polegares no cinto da calça jeans surrada.

- Pra fazer o quê?

- Você só vai ter que passear com o urco, todos os dias. Durante pelo menos quatro horas.

Hamish olhou para o urco com desconfiança. O animal ergueu a cabeça para ele e abanou a cauda.

- Quem é um bom garoto? - Indagou Hamish, fazendo um carinho entre as orelhas do urco.

* * *

A noite já havia caído quando Hamish tocou a campainha da casa de Kobi. Este abriu a porta, admirado. Ao lado de Hamish, o urco abanou a cauda, feliz em voltar ao lar temporário.

- Cara, pensei que você tinha sequestrado o bicho - disse Kobi, com alívio. - Íamos eu e você para a cadeia!

- Longe de mim fazer essa maldade - divertiu-se Hamish. - A última coisa que quero, é ter problemas com o governo.

- Quantas horas foram hoje? - Indagou Kobi. - Você saiu daqui no início da tarde...

- Umas seis horas, pelos meus cálculos. Aposto que você nem vai precisar varrer a cinza essa noite!

Kobi juntou as mãos, em agradecimento.

- Amanhã, à mesma hora? - Indagou.

- Pode contar comigo! - Hamish ergueu a palma da mão, e Kobi bateu nela.

Mais tarde, com o urco enrodilhado no tapete aos pés da cama, Kobi deitou-se para dormir.

Acordou de madrugada, com o quarto em chamas.