Quem gosta de tranquilidade?
Cindy estava cansada, enfadada, tivera um dia difícil.
Vivia a vida que outrora sonhara. Tinha concretizado a maioria de seus projetos e aspirações pessoais, no entanto, às vezes sentia-se como se houvesse um vazio a preencher. Chegou em casa, tomou um banho, finalmente encerrava-se aquele dia. Sentou-se à beira da cama, exausta após mais um dia tumultuado. A vida que construíra, repleta de sucessos profissionais e conquistas pessoais, parecia pesar sobre seus ombros como um fardo insuportável.
Enquanto encarava o teto do quarto, sua mente vagava por entre os escombros de sua existência. Tinha trilhado os caminhos que um dia desejara, alcançara os objetivos que outrora pareciam inalcançáveis. No entanto, em meio às glórias e aplausos, havia um silêncio ensurdecedor que preenchia os espaços entre seus pensamentos. As relações pessoais, os laços afetivos, haviam sido relegados a segundo plano em sua busca incessante por sucesso. Seu coração, outrora pulsante de vida e paixão, agora jazia em um estado de dormência, como se protegido por muralhas erguidas ao longo dos anos.
Embora admirada e respeitada por sua comunidade, a solidão era sua companheira mais constante. Os breves flertes e romances passageiros não eram capazes de preencher o vazio que se alastrava por dentro, como uma sombra crescente na escuridão da noite. Não era uma escolha consciente, mas sim, o resultado de anos dedicados ao progresso pessoal, à busca incessante por excelência. E agora, diante do precipício da solidão, ela se via confrontada com a dura realidade de que o sucesso, por mais brilhante que fosse, não era capaz de iluminar todos os cantos de sua alma.
Certa vez, durante uma viagem de negócios, ela se deparou com um antigo amor da juventude. Ao olhar nos olhos dele, sentiu o mesmo fervor com que a olhava décadas antes e por um instante uma onda de memórias a invadiu. Ela se pegou pensando: " O que teria acontecido se tivéssemos ficado juntos?". Foi um daqueles momentos que te fazem questionar as escolhas da vida. E então, como que por reflexo, ela tentou se imaginar em uma realidade onde ele estivesse presente. Ela sacudiu a cabeça para afastar os pensamentos intrusivos e riu consigo mesma: "Seria hilário vê-lo permeando minha realidade", pensou. Aquele pensamento fora apenas um lampejo e logo se dissipou, o caminho que trilhava não havia espaço para dúvidas ou talvez.
Ali onde estava, deitada à beira da cama, pegou no sono. Enquanto dormia, sua mente mergulhou em um sonho vívido, onde as fronteiras da realidade pareciam se dissolver. Teve a impressão que alguém a observava. Olhou e viu um homem que a olhava com interesse. Ela nunca tinha o visto, mas não sentiu medo, foi até ele e esperou que lhe falasse.
O homem sem dizer palavra, tomou-a pela mão e a conduziu rumo ao desconhecido. Ele não precisava dizer nada; seu olhar transmitia uma confiança tranquila, convidando-a a explorar além das barreiras da sua compreensão. Ela o seguia em silêncio. O lugar onde estava era familiar, mas estava cercado por uma névoa que salientava o aspecto de um mundo misterioso. Ao longe, divisava um brilho intrigante, o homem a levou naquela direção até que adentraram um labirinto de espelhos.
A cada passo que ela dava em direção aos espelhos via sua imagem sendo projetada de maneiras infinitas. Os espelhos capturavam e reproduzia de forma fragmentada, multiplicando-a em miríades de reflexos. Cada passo adiante via a si mesma através de realidades alternativas, onde era possível vislumbrar diferentes aspectos de sua vida e do mundo ao seu redor. Em alguns reflexos, encontrava-se como mãe de uma numerosa família. Em outros, via-se em cenários distópicos, onde o caos reinava e tudo ao seu redor parecia ruir. Em outra direção via que ela era senhora de sua vida, mas vivia em uma realidade completamente diferente da que conhecia. Em um outro reflexo ela protagonizava uma tragédia, pois se via chorando com amargura e era possível sentir a dor e a tristeza em seu olhar.
Em meio àquela profusão de possibilidades, um reflexo se destacava. Nele, ela vislumbrava uma vida tranquila ao lado daquele que fora o amor de sua juventude. Uma vida simples, mas repleta de significado, onde os dias fluíam suavemente em uma harmonia terna e familiar. Era como se aquele reflexo revelasse o destino que sempre estivera latente em seu coração, esperando para ser descoberto. Defronte daquele espelho ela demorou-se por alguns segundos e viu a felicidade singela que emanava daquela atmosfera tranquila e serena. O homem que a acompanhava de perto quebrou o silêncio e falou-lhe pela primeira vez:
— Você terá oportunidade de escolher um novo destino. Escolha dentre todas essas possibilidades um espelho, entre por ele e viva plenamente sua vida. Você terá uma semana para decidir se aquela é a realidade que você tanto almeja, ao final dessa semana, caso não retorne, você ficará presa dentro dela para sempre. Tome essa ampulheta, ela servirá para que saiba quanto tempo terá para tomar sua decisão.
Sem pensar duas vezes, Cindy pegou a ampulheta e correu para dentro do espelho, foi ao encontro do seu antigo amor. Ao escolher seguir por aquele caminho, ela mergulhou de cabeça em uma realidade onde a simplicidade era a maior riqueza. Encontrou-se em um lar acolhedor, com crianças que enchiam os cômodos de risadas e brincadeiras. Seu marido, um homem comum, mas de coração bondoso, era um companheiro amoroso, compartilhando os altos e baixos da vida cotidiana.
Os dias se desenrolavam em um ritmo tranquilo, onde a rotina se tornava reconfortante. Ela descobria a beleza nas pequenas coisas: o aroma do café pela manhã, as conversas à mesa durante o jantar, os abraços calorosos antes de dormir. A cada momento, percebia que o significado da vida residia nas conexões simples e genuínas que compartilhava com aqueles que amava. Mas ela não estava feliz.
Ademais, junto com a aparente tranquilidade, vieram os desafios. Conflitos familiares surgiam, como ondas que batiam contra as rochas, testando a força dos laços que os uniam. Decisões triviais, como o que preparar para o jantar ou como lidar com desentendimentos entre os filhos, ocupavam seus pensamentos, tudo aquilo começou a causar-lhe dúvidas e incertezas. Seu maior dilema passou a ser o cardápio do jantar. Entre as tarefas domésticas e as responsabilidades parentais, ela encontrava-se confrontada com escolhas simples, que lhe faziam sentir como a pessoa mais especial do mundo, pelo menos para seus amados, para aquele núcleo familiar, mas não era o suficiente para ela.
No entanto, mesmo diante desse cenário idílico, uma sensação persistente de vazio a assombrava. Por mais que se esforçasse para encontrar a felicidade na rotina familiar, algo essencial parecia faltar. Um anseio profundo ecoava em seu coração, clamando por uma realização que transcendia as fronteiras da vida cotidiana. E assim, mesmo envolta pela ternura dos momentos simples, ela ansiava por algo mais, algo que pudesse lhe completar e lhe dar motivação para viver plenamente. Ao ver-se tomada pela angustia, sentindo-se presa naquela realidade entediante, Cindy lembrou-se da ampulheta, tomou-a, colocou-se diante do espelho e fechou os olhos.
Ao despertar, ela estava assustada, ofegante. Olhou ao redor e reconheceu sua casa, estava de volta à vida frenética que havia se acostumado. Andar pelo labirinto de espelhos havia lhe concedido a oportunidade de explorar uma nova realidade e agora entendera que não era ao lado daquele homem e de nenhum outro que ela encontraria a verdadeira essência da sua existência, pois já a havia encontrado.
Cindy sorriu aliviada. Não havia medo algum em seu coração, apenas uma sensação de paz e aceitação. Aventurar-se por aquele labirinto de espelhos serviu para que ela confrontasse o que realmente desejava. Depois daquela experiência, depois de vislumbrar aquele emaranhado de realidades alternativas, viu que se tivesse vivido todas aquelas vidas, se tivesse experimentado todas aquelas possibilidades, ainda assim não seria suficientemente feliz. Na vida que estava, no lugar onde chegara é que estava genuinamente feliz. Afinal, cada escolha, cada encontro, cada caminho que percorrera a transformara em quem verdadeiramente era.
E assim, a partir daquele momento quando se deparasse com o véu do "e se", quando por algum segundo sua mente submergisse em um abismo de conjecturas, jamais se deixaria levar pela dúvida ou pela incerteza do desconhecido. Jamais se deixaria levar por questionamentos sobre o que teria sido se os fios do destino tivessem se cruzado de maneira diferente. Ela sabia exatamente onde estava e para onde desejava ir.
Cindy meneou a cabeça para afastar qualquer pensamento, afinal, havia experimentado aquela vida tempo suficiente para saber que não era aquilo que desejava. Aquela vida era tranquila demais para ela e estava claro que não encontraria a felicidade em uma vida pacata e comum. Ela se encontrava em sua melhor versão e qualquer dúvida que viesse a surgir em sua mente seria apenas seu subconsciente tentando sabotar sua felicidade e isso ela não iria permitir.
Obs. O conto faz parte da coletânea Labirinto de espelhos da cartola Editora.