Que me enterrem, então!
Lá para as bandas do Nordeste, bem no meio do agreste, onde existe um sol para cada morador.
Havia uma família de pessoas arretadas, verdadeiros cabras da peste, com sangue no olho, que não temiam o trabalho, muito pelo contrário, se orgulhavam de quem eram.
Os pais eram bem humildes, pessoas bem simples, mas ensinaram aos filhos os verdadeiros valores da vida. Dizia-lhes constantemente que existia honra no trabalho e que através do seu esforço seria reconhecido seu verdadeiro valor.
E assim, todos os filhos aprenderam essa sublime lição. Todos deixavam os pais bem orgulhosos, pois a fama de sua coragem para o trabalho percorria toda a região e chegava bem longe. Melhor dizendo, todos os seis filhos, menos um.
Sempre existe aquele que contraria a regra. Pois esse, não dava ouvidos aos ensinamentos que recebia. Achava que era balela aquela coisa de honradez no trabalho, vivia a filosofar que a única coisa que o trabalho trazia era canseira e calos nas mãos. Longe dele tal castigo.
— Ah se eu encontro o infeliz que inventou o trabalho, ele iria se ver comigo. — Falava entre gargalhadas.
Sua mãe o acompanhava nas risadas, que de certa maneira fomentava seus gracejos. Aquela coisa de mãe que não quer enxergar quando o problema é mais grave do que parece. Ela gostava de suas piadas. Seu coração de mãe via nele algo artístico, não levava a sério o que falava.
— Isso é coisa de menino, quando ele ficar maduro, vai mudar. — Defendia-o quando o pai fazia alguma repreensão.
— É por isso que ele é desse jeito, você apoia os desmandes dele.
O rapaz logo se afastava para evitar uma discussão entre os pais, ainda mais quando ele era o motivo. Evitava problemas a todo custo. Sua falta de coragem não se limitava apenas ao trabalho, era para tudo. Nem disposição para arrumar namorada ele tinha. Os irmãos cobravam, falavam bobagens, mas ele ignorava. Bom mesmo era ficar deitado à sombra de uma árvore, nadar no riacho que resistia valentemente ao sol causticante e permanecia absoluto reinando no meio do sertão.
— Namorar pra quê? — Ele dizia — eu vou ter que trabalhar para levar a namorada para passear, gastar dinheiro com ela. Se para namorar for preciso eu arrumar um trabalho, dispenso. Me deixe solteiro que assim evito todo o transtorno. Trabalho não é para mim! — dizia orgulhoso — para isso já tem meus irmãos que mais parecem burros de carga. Enchem a boca pra dizer que são trabalhadores, imbatíveis e que não tem medo de pegar no batente, pois então, não tenho pretensão alguma de tirá-los esse título. Que continuem sendo os melhores da região. Me deixem aqui descansando na rede que ganho mais, enquanto eu tiver meus pais, não me preocupo com isso não.
O tempo foi passando e o rapaz nunca se incomodou com aquela condição. Seus irmãos muito trabalhadores, eram disputados pelas moças que os enxergavam como os melhores partidos da região. Assim, logo se casaram e constituíram famílias. O mais novo continuava na mesma, solteiro.
Até conseguia uma ou outra paquera, mas como não tinha renda para levar a moça para passear, não fazia projetos para o futuro, afinal, casamento para ele estava fora de cogitação. Aliás, se alguma moça quisesse casar para bancá-lo de tudo como seus pais faziam, ele até queria, do contrário não. Por que abriria mão de sua solteirice por qualquer mulher que fosse? Vivia confortável, seus pais amorosos como eram, não lhe deixavam faltar nada, lhe fornecia tudo de bom.
Mas, a vida por vezes é cruel madrasta e nos pega de surpresa, por mais que a morte não seja algo tão surpreendente assim. O jovem que se orgulhava por seu estilo de vida despreocupado, foi golpeado pelo destino e certa noite ao retornarem para a fazenda, um terrível acidente lhe tirou os pais, deixando-o completamente sem chão.
Após o trágico acidente, o jovem preguiçoso se viu diante de uma realidade cruel e desconhecida. Pela primeira vez, ele estava verdadeiramente sozinho, sem a proteção e o suporte financeiro de seus pais. Enquanto seus irmãos, agora casados e com suas próprias famílias, precisavam cuidar de suas vidas, ele se viu sem ter para onde ir.
Desamparado e sem recursos, ele tentou buscar abrigo e apoio entre seus irmãos, na esperança de que eles o acolhessem e o ajudassem a superar a difícil situação. No entanto, foi recebido com olhares desconfiados e palavras duras. Cansados de sustentar suas atitudes preguiçosas por tanto tempo, não estavam dispostos a carregar esse fardo agora que os pais não estavam mais presentes para ampará-lo.
Desprovido de opções e sem ter para onde ir, o jovem preguiçoso se viu obrigado a enfrentar a dura realidade que tanto evitara. Sem a ajuda de seus pares e sem a proteção de seus pais, ele precisava encontrar uma maneira de sobreviver por conta própria. Mas a ideia de ter que trabalhar e manter-se por si mesmo, era algo que ele ainda não conseguia imaginar.
Desorientado e perdido, o jovem indolente vagou sem rumo, incapaz de enfrentar a perspectiva de ter que abandonar sua vida despreocupada. Enquanto isso, a comunidade ao redor começava a comentar sobre sua situação, alimentavam rumores e julgamentos sobre sua preguiça e falta de iniciativa.
Percebendo que não podia mais continuar fugindo de suas responsabilidades, o madraço lentamente começou a compreender a gravidade da situação em que estava. A dor da perda de seus pais e a pressão da realidade pesaram de tal forma sobre ele que se entregou de vez ao ócio, tornou-se um vadio a morar pela rua.
Um dia ou outro, uma de suas cunhadas levava escondido dentro da bolsa, uma fruta ou outro alimento, temendo que seus esposos vissem, pois já haviam dado ordens que não ajudassem o brandalhão.
— Se ninguém o alimentar, em algum momento ele tomará tino e começará a trabalhar. — concluiu o mais velho, que se sentia a autoridade máxima da família depois da partida dos pais.
Os vizinhos também o ajudaram por um tempo. Não eram de todo ruins. Falavam pelas costas, é bem verdade, mas nutriam ainda grande consideração pelos pais do homem, e em consideração a esses, demonstraram distinção por aquele, por algum tempo. Mas logo isso cessou também, até gentileza cansa, ainda mais quando não vê no outro interesse para vencer na vida.
O mandrião ficou lá jogado no banco da praça, pois, a casa onde morava já havia sido dividida entre todos os filhos, e ele, desajuizado como era, havia torrado tudo nos primeiros meses, não deixou nenhum tostão.
Uma certa manhã acordou com um cachorro lambendo a boca, de certo encontrara vestígio da sopa que recebera de uma beata que saindo da missa se compadeceu dele e levou o caldo para que ele não morresse de fome. O caso é que a mulher também era bem pobre e na maioria das vezes não conseguia alimento nem para ela, coitada, mas quando conseguia repartia com o folgado. Em sua juventude havia sido apaixonada por seu pai, e pensava: “Ah se ele tivesse casado comigo, um filho nosso não viveria nessa situação. Culpa daquela fulana que além de me tomar o namorado, não soube criar o filho, agora fica esse miserável tendo que viver de minha compaixão. ”
Naquela manhã ao acordar com o cachorro lambendo a boca, o mariola levantou de um salto e tomou uma decisão. Aquele seria o dia dele acabar de uma vez por todas com tanta humilhação. Entrou na igreja, mandou chamar o padre, rogou para que esse lhe desse uma rede, poderia ser uma rede velha mesmo, para onde iria não precisaria de luxos. O padre não entendeu o que ele pretendia, mas diante da condição miserável do moço, revirou um baú que havia no fundo da igreja e encontrou uma rede bem desgastada e entregou ao requerente que saiu sem sequer agradecer.
Com a rede na mão o homem chegou na casa do irmão mais velho e apelou para que esse o enterrasse. Claro que de pronto o irmão recusou e virou-lhe as costas, afinal, tinha mais o que fazer do que dar ouvidos a sandice de gente desocupada. Mas o rapaz sempre fora preguiçoso e não burro, despendendo mil argumentos convenceu o irmão a fazer o que ele pedia. Assim, o irmão mais velho convocou os demais e disse que atenderia o pedido daquele alonso que por tanto tempo envergonhava sua família e desonrava a memória de seus pais.
Os demais irmãos respeitavam a palavra do mais velho como se fosse lei, o que ele falava estava falado. Pegaram a rede, o preguiçoso deitou dentro e seguiram com o séquito. Quatro irmãos seguravam a rede, dois seguiam de perto, um de cada lado, as esposas iam atrás chorando, choravam de desgosto, pois naquela região e acho que em nenhuma outra nunca, se ouviu falar de algo daquele tipo.
Volta e meia um vizinho colocava a cara na janela, espiando para ver o que ocorria. Um ou outro, mais curioso, não aguentava e questionava quem havia morrido, aí um dos irmãos começava a explicar a situação:
— Pois é, ele cansou da vida que levava, não ter o que comer e nem para onde ir, pediu para ser enterrado logo e acabar com isso de uma vez por todas.
Uns ficavam espantados, outros assombrados. Uma mulher que ouviu a explicação que davam a uma vizinha de porta correu e foi chamar um fazendeiro, que era tido como o mais endinheirado, havia se tornado meio que o xerife do lugar.
O tal xerife chegou, pegou na borda da rede e bradou:
— Levanta dessa rede, homem! Aqui em minha cidade não tolero suicida, vamos comigo para a fazenda, te dou meia tarefa de milho, de fome você não morre.
— Opa! — disse o pachorrento. — Gosto de milho demais, perdi até a vontade de morrer agora. Mas me diga uma coisa, esse milho já está colhido?
— Milho colhido? Com quem você pensa que está falando, seu ronceiro? Você acha que vou te dar o milho já assado na mão.
Foi aquele alvoroço. O folgado recolheu-se na rede e fez sinal para os irmãos prosseguirem com a viagem. O fazendeiro saiu turrando, vermelho de ódio. “Onde já se viu, o camarada ganhar meia tarefa de milho e não ter coragem de colher para matar a fome”, pensava irritado.
— Esse ai já está morto! Desperdiçada é a cova que vão jogar esse corpo inútil!
No meio daquela confusão apareceu uma senhora pela janela, mulher muito gentil e educada, famosa por fazer caridade a todos, indagou que tumulto era aquela a um menino que estava na calçada. Ao saber que homem seria enterrado vivo, exclamou:
— Misericórdia! Não carece disso não, fala com ele que lá em casa eu tenho uma macaxeira, fresquinha, colhida hoje cedo, pode pegar o tanto que quiser, comer até se fartar.
Nesse momento, o preguiçoso colocou a cabeça para fora da rede e perguntou:
— A macaxeira está descascada?
— Claro que não! — respondeu a vizinha indignada com a indagação.
— Então pode seguir o enterro. — retrucou, baixando a cabeça na rede novamente.
Lá na frente, já quase na saída da cidade, saiu um senhor, muito idoso, com quem o pai do jovem havia trabalhado por muitos anos, ao tomar conhecimento do que ocorria gritou:
— Para com essa palhaçada e leva esse rapaz lá pra casa, lá eu tenho feijão e divido com ele.
Novamente o moço perguntou:
— O feijão está cozido?
— Cozido não está não, mas está debulhado.
— Podem me enterrar, então. — disse o mandrana, deitando a cabeça na rede pela última vez, a poucos passos do cemitério.
Obs. Esse conto faz parte da coletânea Preguiça, da coleção dos 7 Pecados Capitais, da Cartola Editora