À Vontade dos deuses
Tenho deliberadamente contrariado os que dizem querer ajudar-me. Cortei relações com a sensatez que sufoca e com a razão estéril. Quero-me só! Basta-me, seja para contemplar às estrelas, com a certeza de possuí-las, ou para vagar entre lápides e jazigos na simples condição de um feliz indigente. Pretendo-me desabitado. Livre de mim mesmo, sem espelhos e reflexos.
Como um leproso que precisa isolar-se numa ilha deserta com praias de ondas gigantescas e fortes rebentações para livrar-se de feridas inflamadas pela incompreensão, de igual forma eu busco minha ablução. Não bastará isolar-me, excluir-me. Será necessário apagar rastros e pegadas que possam indicar meu paradeiro.
Livrar-me-ei das influências, dos hábitos e das rotinas entranhadas no meu comportamento para viver a vida que nascerá da morte desta. Ninguém haverá de reconhecer-me ou de lembrar-se de mim, nem eu próprio.
Não deixarei vestígios. Extirparei sinais, tatuagens e cicatrizes. Renunciarei a heranças e registros. Quebrarei juras e promessas e desdirei o que disse antanho. Recomeçarei tudo do nada!
Negociarei um acordo de paz com minha memória. Abrirei mão de um passado infestado de nomes, rostos, lugares, histórias e tudo mais que ilustra uma vida que com outras tantas conviveu. Deixarei, porém, preservada no álcool da prudência uma mínima reserva de memória afetiva, que poderei lançar mão quando a dor da saudade me sufocar.
Separar-me-ei do passado e dele não quero absolutamente nada além da minha fé. Não abrirei mão dela. Porém, construirei em cada canto de minha alma um altar e o oferecerei a um deus diferente.