Zalite

“Senhoras, senhores e senhoritas! Vocês acreditam em magia?... Missssticissssmo?... No ocuuuulto?... Ele veio diretamente das arábias para mostrar os mistérios do Oriente... com vocês o grande... o único... o Enigmático Marduk!”

Era exatamente assim que Ferdinando costumava me anunciar. Enquanto ele falava, uma fumaça invadia lentamente o picadeiro, formando uma névoa rasteira. “... o Enigmático Marduk!”.

Em meio ao silêncio de apreensão dos espectadores, uma flauta em estilo árabe deslizava seu som feito cobra na areia do deserto. A iluminação, dividida em azul na parte de cima e amarela no chão, servia para criar o cenário ideal para minha aparição. Fogo! Enormes labaredas erguiam-se no lambendo o ar, poderosas. E então minha figura emergia por entre as chamas, extinguindo-as, substituindo-as por mais vapor.

Eu, que sabia bem do impacto de minha figura elegante, alta, de ombros marcados e costas largas, cobria meu corpo com um tecido brilhante, de efeito molhado e cor de café, na forma de uma capa. Por baixo, uma kandura de linho preta com colete bordô, também de linho, cravejado de pedrarias vermelhas. Finalizava a vestimenta um turbante da cor do colete, com uma enorme pedra que se assemelhava a um rubi em seu centro e penas negras adornando-o.

Talvez as penas não tivessem muito a ver com Marduk, mas eu, Vicente, achava que estas traziam leveza para os movimentos. Tudo que pudesse, no meu show, eu enchia de penas.

Maquiava os olhos com lápis kajal preto, puxando fortemente meus traços orientais e quentes, fazendo com que o negro de meu olhar envolvesse, levasse embora e nunca mais devolvesse qualquer coisa que tivesse vida.

Poderia começar contando toda a minha desgraça de uma vez, mas preciso fazer você entender o que vivi e quem eu sou, só assim vai ter dimensão dos truques do destino.

Foi em uma noite de setembro, o circo lotado, estreia na nova praça. Meu número trazia jogos de luz e sombra, tecidos flutuavam e desapareciam, eu mesmo desaparecia, ressurgindo atrás da plateia que me brindava com “ooooh”, “aaaaaah” e outras exclamações. Lembro que nesta apresentação uma senhora exclamou “Sangue de Jesus tem poder!” quando meu cajado virou uma cobra, bem ali, diante de seus olhos.

Ah, o impacto que eu causava! Os olhares de admiração e medo! Medo puro e genuíno que carregava em si um respeito silencioso. Eu era o senhor daquele picadeiro, Marduk trabalhava compenetrado enquanto Vicente envaidecia.

Depois da apresentação, o palhaço Mortadela anunciou o intervalo. Naquele momento, eu fui para a porta do meu trailer fumar um cigarro, a maquiagem já escorrendo um pouco pelo calor das luzes do palco. Meu corpo tremia um pouco, misto de emoção e vento gelado.

Foi bem ali que vislumbrei pela primeira vez os cachos escuros do cabelo de Theodora. Tudo o que sei é que ela brilhava para mim, não sei se ela estava realmente assim ou se minha memória etílica está me pregando peças.. Emanava uma luz distinta, furta-cor, dançando entre o verde e o lilás. Acho que era, pensando bem, a cor do seu vestido, esse furta-cor. Ou não.

Lembro do sorriso: pequenas peças peroladas, alinhadas com sutileza, com o canino superior esquerdo levemente à frente dos outros. O som da risada era inebriante! Ela ria das estripulias de Mortadela, tão despreocupada, tão honesta, tão... feliz!

Ah, pobre de mim, um mortal inadequado, desajustado, escondido sob uma roupa ridícula, hipnotizado pela naturalidade daqueles quadris distribuindo o peso vez ou outra, pra lá e pra cá.

O intervalo acabou, todos voltavam aos seus assentos. Depois de perder Theodora de vista, comecei a desmontar o Marduk. Era só eu, o Vicente, cansado do espetáculo, com a cara borrada, querendo ficar bêbado ou chapado como um moleque para, no dia seguinte, sofrer a ressaca dos meus quarenta e tantos anos.

Lembro de ter tirado o turbante, que estava todo colado e costurado para ser vestido como um chapéu, e tê-lo deixado sobre uma banqueta de madeira. Procurava minha toalha para enxugar o suor que a noite salpicara em minha testa, quando vi de relance, na visão periférica, dedos curiosos brincando despretensiosos com as penas negras do enfeite no turbante.

Seu olhar era ávido, de quem buscava algo especial para se ver. E isso me invadiu com tamanha intensidade que me senti nu, envergonhado, e, ao mesmo tempo, desejoso de ser o que ela procurava.

Muito séria, ela disse “quero ir embora com você, te ajudar a fazer o que faz, é lindo!”.

Mas é claro que eu ri, ri de nervoso, ri sem graça, sem jeito nenhum. E é claro que ela se ofendeu. Disse-me que voltaria todas as noites de espetáculo enquanto estivéssemos na cidade, e que me convenceria a levá-la comigo.

Uma loucura, certo? Um devaneio sem noção de uma menina mal chegada à maioridade.

Mas que determinação! Noite após noite ela estava lá, sorvendo todo o mistério que eu tinha para oferecer com uma sede nunca vista por estes olhos borrados. Algumas vezes sentava-se na frente, me encarando desafiadora, noutras escondia-se no fundo, fazendo com que eu a buscasse por entres cabeças de espectadores com os quais já nem me importava mais. Já não conseguia mais ser o Enigmático Marduk, mas o Sôfrego Vicente, capturado e escravizado pela presença de Theodora. Ao fim das apresentações ela desaparecia por entre a multidão, dilacerando-me com a sua ausência.

Expliquei para mim mesmo que ela admirava um personagem, que não era real, mas também recusando-me a ser só Vicente, esse miserável. Fiquei no limbo entre os dois, forçando uma existência maltrapilha. Que bobagem, que bobagem! Perfumaria!

E ela voltava. Ela sempre voltava.

No último dia de espetáculo, eis que veio Theodora com uma mochila nas costas e uma mala de mão. Os cabelos cacheados, presos num rabo de cavalo alto, escapavam aqui e ali na rebeldia de sua forma. Ares esperançosos a cercavam, torcendo nervosamente a ponta do vestido na mão suada.

“Eu não tenho mais nada”, ela dizia. “Meus pais morreram, o homem que eu ia casar se arrumou com outra, sou um peso para meus avós”.

Calma, calma. Posso parecer um artista falido, na crise da meia-idade, tarado, querendo acreditar num discurso mal elaborado de uma linda pombinha, jovem e inocente. Mas, vendo seus olhinhos de céu noturno verterem honestidade em gotas, fui do êxtase à penitência. Na primeira vez que a vi, sim, tesão, hoje só de lembrar dessa excitação descabida sinto repulsa, ojeriza.

Esqueça os corpos, invólucros datados que nos servem de morada, e veja além: éramos duas almas solitárias. Eu, Vicente, não Marduk, estava desesperado. Era incompleto, aleijado por uma granada chamada “pai alcoólatra”. Não era nada, não tinha nada. Morava numa carreta de circo, que era dividida em três minúsculos quartos. Ficava no quarto do meio, portanto ouvia o Mortadela peidar no cômodo de um lado, e a Galega, do número no tecido, transando com o Grande Ivan, o Homem Mais Forte do Mundo, que era um russo que pedia tapas com voz de bebê durante o sexo — um verdadeiro pesadelo.

Falei com a Maya, gerente do circo. Disse precisar de uma assistente para alguns números e que Theodora era perfeita para o papel.

Veja, no circo não se fazem muitas perguntas. Tem de tudo morando ali. Ex-presidiário, foragido da justiça, gente jurada de morte, famílias inteiras de nômades, ciganos, religiosos, mães-solo. Cada um fazendo o que dá, porque o show não pode parar. Não importa o que você fez da sua vida até ali, importa o que você faz lá. Essa é a verdadeira mágica do circo, esse é o verdadeiro espetáculo.

Então, Maya nada questionou, apenas perguntou onde ela dormiria, e eu disse que colocaria um colchão para ela no meu um terço da carreta, e o quanto ela custaria para o circo, e eu disse que metade por enquanto sairia do meu próprio salário.

Fiz isso por Theodora, por aquele ser que eu deixaria viver em meu estômago devorando toda a minha comida, se pudesse.

Olhando em retrospecto, parece meio sem sentido. Talvez eu esteja contando errado, porque o tempo e o álcool levaram embora minha memória. Ou talvez tenha sido assim mesmo, sem sentido, sem pé nem cabeça, um encontro cósmico de almas.

Mas, perceba, estou contando essa história aqui, recostado na porta de um boteco, cujo nome nem faz diferença saber. Conto isso em total tragédia, infortúnio. Bêbado, numa síncope, num delírio, rezando para Deus existir e ter piedade de mim, me levar embora daqui. Ou para o Diabo se encher e me arrastar para o lugar que verdadeiramente mereço!

Ai de mim! Ai de mim!

Calma, preciso respirar, preciso contar novamente essa história, como conto todas as noites desde que aconteceu, como conto e reconto, e então falo mais uma vez. Preciso falar de Theodora.

Pois bem, os dias foram passando e, a cada ensaio, ela se mostrava de uma percepção incrível, de uma inteligência ímpar. Decorou, em pouquíssimo tempo, como acontecia cada número meu, meus movimentos em cena, minhas falas. E, todas as noites de espetáculo, acompanhava por detrás da cortina, espiando de um vão no cantinho, desejando ardentemente o palco.

A rotina era simples. Todos se conheciam ali, como uma grande família, e logo ela se enturmou com as meninas mais jovens, bailarinas, trapezistas, mas se mantinha fiel a mim, queria mesmo era ser minha assistente. “Me faça desaparecer!”, implorava ela, batendo as palmas das mãos e dando pulinhos curtos.

Passamos os dias de fartura e os dias de escassez lado a lado. Conhecíamos um ao outro. Ela gostava das penas e plumas assim como eu, e preferia bolo de chocolate. De manhã, seu desjejum consistia em uma caneca cheia de café preto bem doce. “De amarga, já basta a vida”, dizia ela. Chorava sempre que alguém citava Fernanda Montenegro, em qualquer conversa ou contexto que fosse. “Desculpa, é que lembro da minha mãe”. Nunca soube se era uma lembrança específica ou se era de forma generalizada.

Idiossincrasias, uma vez vi essa palavra e o significado me tocou muito. Essas particularidades descobertas debaixo de cada pedra ou detrás de cada árvore em nosso caminho juntos. Eram trazidas pelo vento, pelo acaso, pelas folhas, por seus fios de cabelo travessos escapando aqui e ali.

Certo dia, enquanto pensávamos em um novo número, recebi a notícia da morte do meu pai, alcoólatra, sozinho numa clínica que tratava o vício como demônio e Jesus como única salvação, fiquei bastante baqueado. O Vicente, o pequeno Vicente, estava ferido. Ela cuidou de minhas feridas comigo, foi no funeral, viajamos oito horas de ônibus para chegarmos até lá. Ela me suportou como faria uma irmã, como faria uma mãe, como faria um anjo da forma que concebo.

Na noite seguinte tinha espetáculo, e o show não pode parar. Entrei bêbado como um gambá no picadeiro. Era uma caricatura do Marduk ali, uma piada de mal gosto e hálito de pinga.

Quando dei por mim, Theodora estava no palco comigo, movendo-se como quem dança, envolvendo-me em seus passos e sorrindo. Meu anjo, Theodora. Ela usava um colã preto, com plumas azul-marinho nos ombros e também na saia. Era um pássaro mágico.

Depois deste dia, fiz duas promessas a ela: não entraria mais bêbado no palco e, sim, teríamos um número juntos.

Ensaiamos por semanas, quase todos os dias, exceto no dia antes da folga, no circo nunca se ensaia nada antes da folga — dá azar.

Se tratava de um truque simples, de distrações e fundos falsos, mas o efeito visual que causava era maravilhoso. Aprimoramos cada ponto juntos. Ela era como um gênio e eu a aprisionava de volta na lâmpada, fazendo-a sumir entre fumaça, luzes e um enorme pedaço de seda azul, cor que combinava com seu colã novo com penas índigo.

Então, em seguida, eu pegava a lâmpada e fingia que algo dentro dela se mexia, se rebatia, pequenos papéis brilhantes vermelhos saíam do bico do objeto, e eu virava para cima, deixando a chuva encantada acontecer. Do meio dos papéis picados ela caía em meu colo, vestida de vermelho vivo. E então finalizaríamos o show.

Theodora queria uma palavra mágica, para que eu dissesse bem alto antes de aprisioná-la. Sugeri Zalite, uma palavra sem significado que vira num livro velho de minha mãe. Ela repetiu cada sílaba, sussurrando o “zê” como um silvo de cobra, e então enrolou o “éle” na língua, puxando o “i” para dentro. Por fim, soltou o “te” e o “e” com um baforar de hálito quente. Parecia perfeito em sua boca, em sua fala. A palavra ganhara, ali, todo o significado dos segredos do universo.

Repetimos o show por incontáveis noites, ela se entretinha em fazer poses diferentes, inovar em coreografias, e Marduk passou a fazer toda a sua apresentação orbitando Theodora, a grande estrela, o grande feitiço.

Antes de sumir, quando eu falava “Zalite!”, ela sorria e piscava para mim enquanto era engolida pelo alçapão.

Que lembrança dolorida!

Meu me rasgo de dor, como a garra de um animal dilacerando minha pele, expondo minhas vísceras!

Foi numa noite fria, numa noite fria de lua cheia.

O número corria bem, naquele dia ela tinha escolhido salpicar glitter azul nos cabelos soltos para que, sempre que se mexesse, uma aura brilhante a seguisse. “Glitter são cisquinhos de magia”, dizia ela enquanto se arrumava.

O gran finale se aproximava, assistido por uma plateia hipnotizada por aquela ninfa. Posicionei a lâmpada no chão, joguei o tecido no ar e acompanhei sua descida calculada para cobrir o corpo de Theodora no segundo em que passasse pelo alçapão, enquanto falava alto e grave “ZALITE!”.

Olhei para ela com a certeza de ver as suas pérolas bem dispostas e sua piscadela de malandragem. Mas não vi. Tudo o que meus olhos registraram foi uma triste pluma índigo atraída erraticamente pela gravidade e novamente atirada para o alto pela lufada de ar que passava pelo alçapão que acabava de abrir.

Ela não estava lá, vi a porta oculta no chão abrir e fechar, sem nenhum corpo físico passar por ela. Antes mesmo de “sumir”, ela verdadeiramente sumiu! Se desfez, deixou de existir, como se nunca tivesse sequer existido!

Cheguei ao ponto onde ela deveria cair em meu colo em uma única passada, esticando debilmente meus dedos em direção ao completo nada. Piscava com força, tentando captar qualquer coisa que fosse. O tecido, que estava caído aos meus pés como algo morto, não revelava nada! Absolutamente nada!

O público irrompeu em aplausos, com a melhor mágica já presenciada por eles. E eu, atônito, pálido, tentava agarrar qualquer coisa do meu pensamento acelerado e transportar para a boca, mas não ia. Não ia.

Revirei cada milímetro daquele circo, num silêncio deslocado. Ninguém entendia o que aconteceu. Via meu corpo de fora de mim invadindo outros trailers, vasculhando araras de roupas, tombando latas de lixo. E só aumentava o vazio. Arrastava comigo o crescente e assombroso desespero de tocar o véu da realidade e não encontrar absolutamente nada. Vomitei, e o quente azedo do meu vômito era o que tinha de mais real ali.

Fui à polícia da cidade e eles riram. Riram! “Olha só, o mágico fez alguém sumir!”, diziam. E riam. Gargalhavam. Como hienas implorando os restos da caça. Como porcos que serão abatidos e nem sabem. Malditos!

O assunto foi que era publicidade para o circo. O Enigmático Marduk fez sua assistente desaparecer!

E eu, Vicente, estava quebrado. Ela sumiu. Theodora desapareceu bem diante de mim e nada pude fazer.

Ainda hoje chamo seu nome, implorando para o que a levou a trazer de volta. Repito “ZALITE” aos berros, até gastar toda minha voz, até só meus lábios se moverem e minha garganta não emitir som algum. Eu urro e choro e soco o ar, e de nada adianta.

Eu… só eu e mais ninguém… eu fiz Theodora sumir.

Raquel Koch
Enviado por Raquel Koch em 09/05/2024
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