À toa
E chegando Arthur às margens do rio Estige, foi informado pelo barqueiro que teria que pagar a travessia com metal sonante.
- Ninguém mais usa dinheiro vivo nos dias de hoje - espantou-se. - Por acaso não atualizou seus métodos de pagamento, durante todos estes milênios?
- Aqui no submundo, somos a favor da tradição - redarguiu o barqueiro, num tom indiferente. - Por esse mesmo motivo, nunca tivemos problemas com quedas de sistema, fraudes bancárias, ou invasão de hackers.
Arthur revirou os bolsos. Nada, nem uma moeda.
- Não que eu esteja ansioso por ir para o Hades, mas o que acontece se eu não tiver dinheiro para pagar pelo transporte?
O barqueiro fez um gesto abrangendo a desolada praia do Estige, delimitada por uma floresta escura e lúgubre, sob um céu eternamente nublado e crepuscular.
- Você pode procurar um canto e se instalar. O tempo de espera para gente lascada como você, é de 100 anos.
- Eu não era um lascado! - Protestou Arthur. - Acontece que não estava preparado para esse tipo de além-vida.
O barqueiro deu de ombros.
- É o que todos dizem; ninguém nunca está preparado quando a hora chega.
A conversa foi interrompida pela chegada de um sargento e três soldados em uniformes verdes, que pareciam aturdidos.
- Que lugar é esse? - Perguntou incisivo o sargento ao barqueiro.
- É o além-túmulo, sargento Efraim - disse pacientemente o barqueiro.
- E como sabe o meu nome? - Questionou o sargento, mãos nas cadeiras.
- Eu sei o nome de todos que vêm ter aqui, e o motivo - explicou o barqueiro, apontando para os soldados. - Uziel, Rafael e Obadias. Vocês têm o dinheiro para pagar a travessia?
Obadias enfiou a mão num bolso do uniforme e dali tirou algumas moedas antigas.
- Estas servem?
O barqueiro as pegou e examinou com atenção.
- Onde conseguiu isso? - Perguntou finalmente.
Os soldados se entreolharam e riram baixinho.
- Peguei numa casa que nós entramos, procurando terroristas - explicou Obadias. - Estavam numa gaveta, parecem ser valiosas.
O barqueiro balançou a cabeça, como que em concordância.
- E aí, a casa explodiu - complementou calmamente.
Os soldados o encararam surpresos.
- Parece que os terroristas encontraram vocês - divertiu-se Arthur, entrando na conversa. E, voltando-se para o barqueiro:
- Olha, estou até satisfeito em não poder fazer a travessia agora. A última coisa que iria querer, era viajar junto com esses caras.
- Ei, veja lá como fala - disse o sargento Efraim, levando a mão à cintura, onde estaria a pistola. Mas o coldre estava vazio.
- Aqui ninguém briga, ou não passa para o outro lado - advertiu o barqueiro, apontando para o sargento. E voltando-se para Arthur:
- A sua passagem está paga, pode embarcar.
- Ei! - Exclamou Obadias. - Esse dinheiro é nosso!
O barqueiro arreganhou os dentes num arremedo de sorriso.
- Calma, vocês também vão. Do lado de fora do barco, agarrados à uma corda.
Os quatro soldados pareciam prontos a pular sobre o barqueiro, mas finalmente o sargento pareceu cair em si:
- Já estamos mesmo mortos, isso não vai resolver nada.
O barqueiro fez um gesto de concordância.
- Muito bem. Arthur, tome assento no barco.
E, para os soldados:
- Quando eu entrar, vocês empurram o barco para o rio. A corda vai estar pendurada no casco.
Arthur senta-se na proa, o barqueiro ocupa o lugar na popa, junto ao leme, e os soldados empurram o barco para dentro do rio. Finalmente, grunhindo e resmungando, os quatro entram nas águas lodosas e seguram na corda para serem levados à toa para o Hades.
- [22-03-2024]