Semente (despretenciosa homenagem à Joyce)

Semente

Bom dia, minha florzinha!

Tudo bem com você?

Oh, minha doçurinha. Quer solzinho?

Está bem, está bem, mamãe já vai abrir a janela.

Olha só, olha o solzinho entrando, hum...

Ah! Que dia lindo!

Nossa minha florzinha, que dia lindo!

O sol renasce todos os dias de minha vida.

Bonito né, florzinha?

<o sol renasce todos os dias minha vida>

O que você acha de fazermos um poeminha?

Vamos tentar? Então assim está.

O sol renasce todos os dias minha vida

A vida que aflora a rosa de meus dias

Os dias que florescem com o passar do tempo

Os meus desejos mais proibidos.

Ah, florzinha, meus desejos proibidos...

Que desejos são esses?

Não tenho nenhum desejo proibido.

Não, isso não!

Não mesmo.

Desejos proibidos?

De jeito nenhum.

Nunca desejei nada.

Nunca tive desejos.

Desejos nunca tive.

Nada desejei

Em toda minha vida.

Nunca!

Nem vou querer desejar agora

Depois de tantos (in)desejos...

Desejar – sinceramente!

Minha florzinha, nunca.

Deixa esse poeminha pra lá.

Não quero mais poetar.

Não sou poetiza,

Não sou papisa,

Não sou sacerdotisa,

Não sou beneditina,

Não tenho vocação nenhuma,

Só conheço o papa-nicolau.

E não gosto do papa

Não tenho vocação nenhuma,

Sou apenas sozinha... Sozinha?

Ah! Minha florzinha, você não está sozinha não, eu estou aqui.

Ai, minha coisinha linda, meu serzinho de pétalas!

Já sei! Tá com sedinha, não tá?

Mamãe vai buscar aguinha pra florzinha!

Olha só, olha a aguinha da florzinha.

Pinguinho, pinguinho, pinguinho...

Minha florzinha, meu carinho.

Pinguinho, pinguinho, pinguinho, pinguinho...

Minha florzinha, teu refresquinho.

Não tem chuva? Eu faço pinguinho pra você, viu!

Ah! Minha lindinha!

Pinguinho na florzinha

Pra ficar lindinha.

Lindinha da mamãe.

Viu, florzinha!

Ah florzinha, agora chega, já bebeu bastante aguinha, não quero te matar com muita água. A morte pela água é de se ter medo, pior que morrer de sede. De qualquer forma quantas não são as mortes: morrida, matada, induzida... Sabe de uma coisa, minha florzinha? Todo mundo morre um dia, você pode morrer também, basta eu me descuidar, esquecer de regá-la, de limpar o seu vasinho... Mas a pior de todas as mortes é a da solidão... Por isso converso com você todos os dias, sei que você me escuta. Quantas já não foram as vezes em que você estava meio caidinha e, depois de algumas conversinhas, vi você se reanimar de novo. Tenho certeza que você escuta e, de certa forma, acho que também te escuto. Fala que eu te escuto, nós duas brincamos sempre. É como se eu pudesse sentir suas vibrações, sua energia embelezando esse quartinho. Às vezes, o dia pode até ficar escuro, desses breus que nem as estrelas conseguem vibrar de intensidade.

Nesses dias de trevas, minha florzinha, a trama dos colchões é de tirar o peso de nossas costas, cobrimo-nos com toda espécie, tipo e tamanho de cobertores para esquecermos do frio e para nos protegermos do breu desses dias trevosos. Florzinha, foram tantos desses dias em minha vida que se pudesse dizer, em uma só palavra, tudo o que se passou comigo, essa palavra seria: EMBOTAMENTO. Sim, minha florzinha, tive toda sorte de torpores e fadiga dos sentidos. Aos poucos fui perdendo a vontade; toda sorte de vontade. Não que eu rejeitasse comer, dormir, ou fazer sexo, porque tudo isso são desejos, mas não conseguia me ver em algum projeto de vida, um objetivo concreto em que eu pudesse dar toda a minha força e minha vida. Talvez, porque eu não tive a capacidade de cultivar em minha mente e em meu corpo a alegria necessária de se viver.

Quando dei por mim, estava aqui neste quartinho, regando minha plantinha e rezando para que os dias passassem bem depressa junto com os dias de meus dias que não são mais meus, mas do tempo que passa assim como a chuva, que cai trazendo consigo as propriedades do ar.

Não que eu pretenda sair correndo, arrancar minha roupa no meio da rua e gritar para todo mundo ouvir: ULISSES!

Não, minha florzinha, de nada adiantaria tal insanidade.

No máximo, algumas pessoas não entenderiam o que eu quero dizer, pois não conhecem Ulisses. Decerto, zombariam de mim, gritando:

- Lá vai a louca do 520. Cata ela. Taca Pedra. Pouca roupa. Cota Xota. Xica Taco. Bicha Loca. Puta Parca. Lá vai ela... uh, uh, uh, uh. E de nada, minha florzinha, de nada adiantaria esse meu grito, este meu nonsense literário, este meu ataque histérico, porque não entenderiam que minha colcha parece nunca acabar de ser tecida. Sabe florzinha, estou à espera de algo há muito tempo e de nada ao mesmo tempo. Por isso zombam de mim, como zombavam de Jesus ao pé da cruz e, se pudessem, fariam o pior: tirariam de mim a única coisa que me resta, que é você, minha florzinha. E tudo o que eu tenho é você minha lindinha, e nada, nem coisa alguma pode nos separar, mesmo porque plantas não saem por aí, feito maridos bêbados que se enroscam com a primeira puta que lhes aparece. Sabe de uma coisa plantinha... Já tive gatinhos, cachorrinhos, pardaizinhos, piriquitinhos, coelhinhos, ratinhos, sapinhos, tartaruguinhas, peixinhos, macaquinhos e até uma jibóiazinha, mas todos eles morreram.

Meu primeiro marido morreu, foi o primeiro homem de minha vida e ficamos juntos cinco anos, não tive filhos.

Mataram meu segundo marido, vivemos sete anos, não tive filhos.

Meu terceiro marido se suicidou, ficamos dois anos juntos, não tive filhos.

Depois cansei de morrer maridos e desisti de ter filhos. Daí é que comecei a ter bichinhos, mas todos eles morreram antes do tempo, você é o único ser vivente que ficou ao meu lado em todos esses anos. Nunca pensei que as plantas fossem tão longevas.

O que faltou para mim... Sabe o que foi lindinha, o que faltou para mim?

Luz.

Luz foi o que faltou para mim.

Em pensar naqueles dias trevosos nos quais vi, um por um, todos meus sonhos sendo despedaçados pelo acaso, fizeram-me crer que o destino é algo malévolo para comigo.

Por isso decidi largar a mão e deixar os dias passar, dia após dia, sem tentar mudar nada, sem tentar construir nada, sem tentar fazer nada, sem tentar tentar alguma coisa ao menos. Nada. Nenhum desejo, nenhuma ambição, nenhum prazer, nenhuma vontade, nenhuma caridade, nenhuma festa, nenhum abraço, nenhum beijo, nenhuma alegria, nenhuma maldade, mas também nenhuma bondade.

E pior de tudo! Nenhuma loucura.

Por todos esses dias tive sempre a plena consciência de meus infortúnios, de minha realidade, de minhas fraquezas, de minha tragédia. Não deixarei que minha mente engane minha dor, não deixarei que meu espírito esqueça a minha dor, não deixarei que minha alma se liberte de minha dor.

E tudo isso, minha florzinha, para viver só neste quartinho, tendo você como minha única companhia. Se vou me arrepender?

Não.

Não vou me arrepender, minha florzinha.

E sabe por quê?

Porque do alto da montanha vejo a planície e sei que, por ela, toda minha vida corre em direção ao lago, onde os juncos dos santos estarão a me esperar, junto às pedras das rochas onde viverei toda a minha eternidade ao lado de meus cânticos soturnos dos quais outrora marchavam impérios vitoriosos da batalha infinita entre o vento e o mar. E poderei, enfim, conhecer Ulisses, assim como conheço a mim mesma e, se tiver sorte, serei a vertigem do crepúsculo perdendo-me ao som de meus zumbidos.

Na manhã seguinte, bateram na porta do apartamento 520 da Rua 16 de junho e não ouviram nada, nenhum barulho, nenhuma voz, nenhum sussurro, nenhum gemido, só o silêncio de uma flor.

Esperaram pois, os vizinhos, pelo crepúsculo e voltaram a bater na porta do 520, mas o som era o mesmo. Preocupados, chamaram a polícia que, após várias tentativas de comunicação, resolveram por fim arrombar a porta.

O quartinho estava vazio e as únicas coisas que fizeram foram replantar a florzinha no grande jardim do condomínio e, mais tarde, dar o último adeus àquela voz solitária de mulher que se silenciara para sempre, plantada no jardim cuja última semente que restara só daria vida aos vermes da inconseqüência humana.

Doutor Abreu
Enviado por Doutor Abreu em 03/01/2008
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