E A Vida Prossegue...
Depois de alguns dias mergulhada num sono profundo a mulher abriu seus grandes e belos olhos azuis. Em alguns instantes seus olhos puderam divisar o pequeno, porém, arejado quarto em que se encontrava deitada. As paredes do local eram de um azul claro que produziam um efeito calmante em seu espírito feminino, por vezes dado a atitudes intempestivas.
— Ah! Vejo que a senhora finalmente acordou, dona Elisa, como está se sentindo? — disse a jovem enfermeira satisfeita ao se aproximar da cama daquela paciente, uma mulher de baixa estatura que aparentava ter entre sessenta e sessenta e cinco anos e que a olhou com indisfarçável curiosidade.
— Estou bem, apenas um pouco sonolenta e cansada. Como foi a minha cirurgia?
— Não se preocupe, o tumor do seu intestino foi completamente retirado. Agora a senhora terá uma alimentação a base de líquidos para que o seu intestino e o sistema gástrico-digestivo possa se adaptar à nova situação. E se antecipando ao questionamento de Elisa a paciente enfermeira esclareceu:
— Meu nome é Kim. Sim, nasci na minha amada China, mas vim para o Brasil com meus pais em busca de uma vida melhor quando contava meus quinze anos.
— Muito bem, enfermeira Kim, onde está minha filha? Quero vê-la agora — falou a assistida em tom quase autoritário.
— Procure se manter calma, Elisa, seu estado físico e emocional ainda não é o ideal. Márcia não pode estar com você agora. Descanse, mais tarde o doutor virá vê-la. Tenha um bom dia, vou cuidar dos meus outros pacientes. Se precisar de algo é só acionar o botão aí na sua cabeceira. Até breve, Elisa!
Seguindo as recomendações médicas, Elisa começou a fazer caminhadas pelos corredores daquela instituição hospitalar e se sentiu feliz quando finalmente pôde respirar ar puro nos bem cuidados jardins, sempre floridos e repletos de pássaros cantores, do Bom Samaritano, que segundo lhe informaram é o nome daquela instituição. Elisa só não entendia o porquê de sua filha tê-la transferido de hospital, pois aquele não era o mesmo hospital onde se internara para a extração do tumor cancerígeno em seu intestino. E por que ainda não viera lhe visitar? “Está certo que Márcia é uma empresária muito ocupada, mas isto não é desculpa para me deixar sozinha aqui” pensava consigo mesma a mulher inconformada.
Parecia existir da parte dos médicos e enfermeiros uma espécie de pacto de silêncio em torno do assunto. Quando Elisa perguntava sobre a ausência de sua filha ou sobre a transferência de hospital, todos davam respostas evasivas do tipo “tranquilize-se, tudo vem a seu tempo”, deixando a pobre mulher cada vez mais impaciente e preocupada. “Será que minha filha teve a ousadia de me colocar num hospital-asilo? Não, eu não posso crer nisto.” Foi numa linda manhã, depois de realizar alguns testes clínicos, o médico lhe deu a boa notícia:
— Parabéns, dona Elisa, a senhora recebeu alta.
— Que notícia boa, doutor! Minha filha veio me buscar? Exibindo um semblante mais sério agora o médico elucidou:
— Ouça com atenção, minha irmã, houve uma complicação na sua cirurgia e você deixou o corpo físico. Aqui residimos todos numa das muitas cidades da dimensão espiritual. Em outras palavras, para os habitantes da Terra constituída de matéria grosseira, você morreu, Elisa.
— Mas que maluquice é esta, meu Deus! Ah! Tudo bem, eu morri então, cadê o Céu e os anjos? Afinal, fui uma pessoa generosa na Terra, ou não fui? — e se beliscando no braço a mulher quase indignada concluiu:
— Olha aqui, doutor, isto é matéria sólida com sangue quente correndo em minhas veias. Sinto fome, frio, sede, calor e dor, então me explique, por favor, como posso estar morta? Que gente doida! Sem se perturbar o dedicado representante da medicina respondeu:
— O Céu, os anjos, o Inferno e os demônios são figuras alegóricas que as religiões ainda não puderam ou não desejam se desfazerem, quanto ao corpo, na presente dimensão em que nos expressamos ainda temos um, e se para os encarnados na Terra tal corpo é espiritual, para nós ele continua a ser material. Com o tempo você irá compreender e se convencer, Elisa. Agora vá, minha irmã, tem alguém lá no pátio central à sua espera.
Quando o cavalheiro de porte elegante veio em sua direção com os braços abertos, a mulher quase desfaleceu, porém, rapidamente o homem a amparou em seus braços.
— Adriano, é você mesmo, meu marido!? Mas como pode ser, Deus meu!? Você morreu há cinco anos. Certamente eu devo estar sonhando. Depois de abraçá-la demoradamente o homem sorriu e falou bondosamente:
— Sou eu, Elisa, em carne e osso ou melhor, em espírito e matéria própria deste plano. Seja bem-vinda, minha querida!
— Nossa, você está bonito, remoçado — disse a mulher enquanto acariciava os cabelos grisalhos daquele que fora seu marido na Terra. O homem se desvencilhou delicadamente dos braços de Elisa e com naturalidade a advertiu:
— Elisa, um casal de amigos concordou em hospedar você na casa deles até que você arrume uma ocupação por aqui. Ficarão felizes em recebê-la e a tratarão como uma irmã querida.
— Como assim, Adriano, não estou entendendo. Nós não vamos ficar juntos? Você tem uma casa neste lugar, não tem? O cavalheiro soltou um profundo suspiro e depois de uma longa pausa esclareceu:
— As coisas mudaram, Elisa, eu me casei novamente há dois anos. Mariana é uma companheira maravilhosa e nos damos muito bem. Tomada pela cólera a senhora tentou esbofetear o agora ex-marido, mas este impediu a progressão do braço da ex-esposa sem machucá-lo.
— Traidor! O que o faz pensar que irei aceitar isto? Após dizer tais palavras, Elisa sentiu uma forte dor na região abdominal.
— Reaja, Elisa, controle sua raiva. Seu corpo agora é feito de uma matéria que responde melhor aos nossos pensamentos e às nossas vibrações positivas e negativas. Sua raiva está envenenando seu organismo. Vamos, reaja! — elucidou Adriano. A mulher conseguiu se controlar e aos poucos a dor foi diminuindo até passar. Aproveitando o ensejo o ex-marido pôs-se a ponderar:
— Reconheça, Elisa, nossa união conjugal foi um verdadeiro martírio. Brigávamos o tempo todo e discordávamos em praticamente tudo, exceto pelo nascimento de nossa filha, o único fruto bom do nosso casamento. Ah, quantas vezes pensei em me divorciar de você, Elisa, porém, faltava-me coragem para deixar o lar com uma filha pequena e com o passar do tempo fui me acomodando àquela situação infeliz, isolando-me cada vez mais na dedicação ao trabalho. Ademais, nas poucas vezes em que ousei tocar no assunto, você sempre arranjava um jeito de se esquivar. A mulher, caindo em si, baixou um pouco a cabeça, em seguida considerou:
— Sim, Adriano, eu admito, nosso casamento foi um mar de desgostos, lágrimas, tédio e de solidão para mim, no entanto, também me acomodei. De início foi por nossa filha que suportei essa situação penosa, mas a verdade é que tive medo de enfrentar a opinião da sociedade, das pessoas do nosso meio social. Tinha conhecimento de que algumas de minhas amigas detestavam seus maridos, entretanto, todas mantinham as aparências de um casamento perfeito ou quase. No fundo eu não queria ser a única divorciada e malfalada do grupo.
— Nós dois erramos, Elisa e já que não podemos retroceder, o jeito é recomeçar. Não estamos mais no mundo das aparências e das conveniências sociais. Neste plano em que agora nos encontramos a alma reflete no seu exterior tudo aquilo que é inerente ao seu interior. Quem é luz gera luz e quem é escuridão se envolve nas sombras. Quem é fósforo como eu, ora produz fogo, ora gera um segundo de luminosidade. Neste instante a mulher sorriu descontraída, se lembrando da própria instabilidade emocional. Por fim o ex-marido concluiu satisfeito:
— Com o tempo, trabalho, sacrifício pessoal e desprendimento, aprenderemos a produzir apenas luz, Elisa.
— E nossa filha, Adriano, eu poderei visitar Márcia algum dia? Já sinto tanta saudade.
— Sim, quando estiver preparada. Eu a visito sempre que posso.
—Tá certo, agora me conte quando irei rejuvenescer igual a você? Adorei isto. Quem sabe eu não arrume até um namorado por aqui agora que estou solteira e desimpedida. O homem deu uma gostosa gargalhada e falou:
—Lembre-se do que eu lhe disse, a beleza da alma se refletirá no corpo. E voltando a abraçar a ex-mulher com fraterna ternura, Adriano rematou:
— Seja feliz, minha querida. Vamos, Anselmo e Lúcia aguardam ansiosos pela sua chegada.
A jovem senhora, cabelos espalhados pelo vento, acompanhada do marido e de seus dois filhos ainda crianças, caminhou pela areia branca até se aproximar das águas. Márcia ergueu os belos olhos azuis que herdara da sua genitora na direção do deslumbrante horizonte , em seguida lançou as cinzas de sua amada mãe ao mar.
A vida se manifesta em múltiplas dimensões e o pensamento Divino permeia todo o universo, pois como nos ensina Jesus, o Mestre do Amor, “há muitas moradas na Casa de meu Pai”.