Eu tenho o corpo fechado...
A História de Lampião, o famoso cangaceiro que sofreu inúmeros ataques ao seu corpo e resistiu a todos eles, menos à traição, que o levou à morte, sempre fascinou Norberto, carioca, trabalhador, cheio de sonhos, nascido e criado no morro.
Apesar da aparência frágil, era um exímio lutador de capoeira e sua ocupação como operário da construção civil o tornou um homem forte. Era conhecido como “Louro” na comunidade em que morava, devido aos traços herdados do seu pai que não chegou a conhecer, pois fora assassinado por traficantes numa disputa por liderança na favela, embora não tivesse algum envolvimento com eles. Morreu na porta de casa, quando saia para o trabalho.
A orfandade paterna sempre o fez sofrer, e procurava evitar contato com qualquer um que tivesse aproximação com o crime. O que sabia do pai vinha das memórias da mãe, uma morena vistosa que não casou novamente após sua morte. Com poucos recursos e precisando trabalhar para criar o filho, ela contava com a ajuda de uma vizinha com quem deixava a criança. Assim Norberto teve contato com Agenor, marido daquela, um idoso baiano que lhe contava as histórias da sua terra e do seu tempo, bem como sobre o tempo da escravidão e do cangaço que seus ascendentes vivenciaram. O menino a tudo ouvia, encantado.
Por força de vontade, já que nunca frequentou uma escola, aprendeu algumas letras e, sob a influência de Agenor, buscava ler tudo sobre o cangaceiro mais ilustre do sertão quando podia frequentar a biblioteca pública.
Amava Hermínia, moça bonita, com estudo e boa educação, e pretendia se unir a ela pra toda vida, como anunciava aos quatro ventos. E por ela acumulou alguns desafetos, pois afrontava qualquer um que dela se aproximasse.
Hermínia também amava Norberto, mas seus pais não viam o namoro com bons olhos. Queriam que a filha “arrumasse alguém com situação melhor”. Trabalhavam duro para que ela tivesse um bom futuro e não precisasse viver onde e como viveram desde sempre.
Louro não se conformava com a situação e as encrencas em que se envolvia por causa dela começaram a preocupar Maria da Graça, sua mãe, que procurou Agenor em busca de conselhos. O velho homem lhe disse que via apenas uma solução: “fechar o corpo” de Norberto. Somente assim nenhum mal o alcançaria.
E explicou algumas maneiras de como fazê-lo. Poderia ser uma oração de proteção, que resultaria em um corpo protegido de mal físico ou espiritual e o rito garantiria barreiras contra ataques dos inimigos, fossem eles com armas brancas, de fogo, o que fosse. Também lhe contou sobre outra forma: o pretendente ao fechamento, completamente despido e de pé dentro de um balde de água, com o pé direito sobre o esquerdo, receberia gestos de trancamento feitos com uma chave ou, ainda, através de uma freira, que lhe costuraria uma hóstia sob a pele enquanto seriam feitas orações. Animada, a aflita mãe lhe pergunta onde encontrar quem faça isso e Agenor se declara um “fechador de corpo” e que poderia fazer o trabalho em favor do jovem. Maria da Graça agradece e diz que pensará sobre o assunto.
No mesmo dia em que Maria visitou o vizinho, Louro chegou em casa severamente machucado. Havia aceitado um desafio na capoeira e, apesar da sua prática e destreza, tinha sido vítima de um mau jogador, um rival na batalha por Hermínia, que o atingiu com golpes não permitidos na luta. Isso bastou para que ela começasse a aceitar o “fechamento do corpo” do filho.
Cada vez mais apaixonado, Norberto resolve pedir a mão da moça em casamento. Para impressioná-la e aos seus pais, procura um agiota buscando o dinheiro necessário para a compra das alianças. Acerto feito, escolhe um par com aro mais grosso possível para que todos vejam que sua amada agora está comprometida. Jamais tira a aliança desde que teve o noivado oficializado. Exibindo-se para os rivais com a joia no dedo da mão direita, aceita e perde mais uma disputa para os maus jogadores da luta e chega machucado outra vez em casa. É quando Maria da Graça decide contar ao filho sobre a conversa com Agenor. Lembrando da história de Lampião, que também tinha o “corpo fechado” e sobrevivido a diversos ataques, o rapaz concorda imediatamente e, escolhendo o ritual dos pés no balde e com trancamento à chave, combinam o dia e o local com o ancião.
Ele passa a se sentir inatingível depois do cerimonial. Não há mais nenhum ferimento durante o trabalho nas obras, ou em qualquer outro lugar, nem doenças e nem mais golpes sujos que o alcancem nas provas da capoeira, vencendo todas após o fechamento do seu corpo. Diante de algum possível embate, sempre apregoa - “Eu tenho o corpo fechado, nenhum mal me alcançará”!
Não tendo cumprido o prazo para o pagamento do agiota, Norberto recebe a primeira visita de cobrança do explorador e a ameaça de que não será perdoado se não cumprir o acertado. Com apenas dois dias a mais recebido para arranjar o dinheiro, que sabe que não conseguirá, o rapaz não se preocupa. Afinal, nenhum mal o alcançará. O agiota, por sua vez, não quer problemas com a polícia, quer tão somente seu dinheiro e quando retorna, junto a quatro capangas que imobilizam o devedor, retira-lhe a aliança dizendo que aquela só paga a metade do que ele lhe deve, e que voltará para buscar o restante, concedendo-lhe mais très dias para se virar.
Louro não se abala. Tem o corpo fechado! Pedirá um empréstimo, trabalhará dobrado, conseguirá o dinheiro e tudo se ajeitará.
Seus rivais, e também aspirantes a pretendentes da Hermínia, ficam sabendo da história da agiotagem e resolvem contar aos pais da moça. Osvaldo Jorge, o pai, esbraveja e diz que não faltaram avisos sobre o futuro genro e determina que ela irá desfazer o noivado sob pena de ser mandada para fora do Rio, indo morar com os tios no interior de Alagoas. Ela chora, esperneia, diz que não terminará e o pai decide que no dia seguinte venderá a sua aliança e a colocará num avião rumo à casa dos familiares. Também insinua aos delatores que Norberto merecia é uma sova das boas. Os sujeitos se entreolham, sabem que o rapaz tem “corpo fechado”, que nada o atingirá, e não se manifestam.
Já em casa, Louro olha para a mão direita, desolado. Em lugar da grossa aliança que ostentava, há agora um vazio e a marca branca no seu dedo anelar. Pensa em Hermínia, no que dirá para ela se tiver que lhe pedir o anel de noivado de volta, pois, talvez, não tenha como pagar ao agiota. Tem uma noite cheia de pesadelos, mal se despede da mãe quando sai para o trabalho e muda o trajeto diário, pois não quer correr o risco de encontrar a noiva antes de ter a solução para o que lhe aflige.
Desce o morro cabisbaixo e pensativo, e ao final da descida avista os seus desafetos. Mas ergue a cabeça enquanto murmura - “Eu tenho o corpo fechado, nenhum mal me alcançará”!
Logo chegará à estação do trem que o conduz à obra na qual trabalha, conversará com o seu patrão e lhe pedirá um adiantamento, alegando que a mãe precisa de um tratamento que o serviço de saúde pública não oferece, e ele lhe atenderá, por ser considerado um bom operário. Ao atravessar para a plataforma de embarque, nota que seus inimigos o acompanham de longe e repete o seu mantra: “Eu tenho o corpo fechado, nenhum mal me alcançará”!
Quando vislumbra a locomotiva apontando na estação ele respira aliviado, pois os rivais não terão tempo de alcançá-lo. Embarca em meio ao habitual amontoado de gente, se acomoda como pode e segue com seus pensamentos: - Sim, tudo dará certo!
O trem vai esvaziando ao cumprir o itinerário e faltam poucas paradas para o seu desembarque. Quando chega ao seu destino, já está diante da porta dupla, aguardando que suas bandas se abram. Ao dar a primeira passada para fora do vagão, vê o sogro parado bem à sua frente, com um olhar frio e fixo, como se o esperasse. Num movimento rápido e pensando evitar um conflito com o futuro familiar, Louro tenta retornar, mas perde o equilíbrio e a porta automática se fecha no exato momento em que sua mão direita tenta forçá-la a manter-se aberta e tem seus dedos prensados entre as duas partes, mantendo-o preso enquanto o trem segue caminho. Pendurado pela mão, o rapaz é arrastado, chocando-se contra as paredes dos vãos da plataforma quando seus vagões passam pelas mais estreitas.
O ritual do fechamento de corpo escolhido requeria a nudez total, mas Norberto não despiu a vaidade de ostentar a grossa aliança de noivado durante a cerimônia, tornando uma pequena parte do seu corpo vulnerável. Pequena, mas suficiente para permitir que o mal o alcançasse, sem que ninguém lhe tivesse tocado.
Apesar da aparência frágil, era um exímio lutador de capoeira e sua ocupação como operário da construção civil o tornou um homem forte. Era conhecido como “Louro” na comunidade em que morava, devido aos traços herdados do seu pai que não chegou a conhecer, pois fora assassinado por traficantes numa disputa por liderança na favela, embora não tivesse algum envolvimento com eles. Morreu na porta de casa, quando saia para o trabalho.
A orfandade paterna sempre o fez sofrer, e procurava evitar contato com qualquer um que tivesse aproximação com o crime. O que sabia do pai vinha das memórias da mãe, uma morena vistosa que não casou novamente após sua morte. Com poucos recursos e precisando trabalhar para criar o filho, ela contava com a ajuda de uma vizinha com quem deixava a criança. Assim Norberto teve contato com Agenor, marido daquela, um idoso baiano que lhe contava as histórias da sua terra e do seu tempo, bem como sobre o tempo da escravidão e do cangaço que seus ascendentes vivenciaram. O menino a tudo ouvia, encantado.
Por força de vontade, já que nunca frequentou uma escola, aprendeu algumas letras e, sob a influência de Agenor, buscava ler tudo sobre o cangaceiro mais ilustre do sertão quando podia frequentar a biblioteca pública.
Amava Hermínia, moça bonita, com estudo e boa educação, e pretendia se unir a ela pra toda vida, como anunciava aos quatro ventos. E por ela acumulou alguns desafetos, pois afrontava qualquer um que dela se aproximasse.
Hermínia também amava Norberto, mas seus pais não viam o namoro com bons olhos. Queriam que a filha “arrumasse alguém com situação melhor”. Trabalhavam duro para que ela tivesse um bom futuro e não precisasse viver onde e como viveram desde sempre.
Louro não se conformava com a situação e as encrencas em que se envolvia por causa dela começaram a preocupar Maria da Graça, sua mãe, que procurou Agenor em busca de conselhos. O velho homem lhe disse que via apenas uma solução: “fechar o corpo” de Norberto. Somente assim nenhum mal o alcançaria.
E explicou algumas maneiras de como fazê-lo. Poderia ser uma oração de proteção, que resultaria em um corpo protegido de mal físico ou espiritual e o rito garantiria barreiras contra ataques dos inimigos, fossem eles com armas brancas, de fogo, o que fosse. Também lhe contou sobre outra forma: o pretendente ao fechamento, completamente despido e de pé dentro de um balde de água, com o pé direito sobre o esquerdo, receberia gestos de trancamento feitos com uma chave ou, ainda, através de uma freira, que lhe costuraria uma hóstia sob a pele enquanto seriam feitas orações. Animada, a aflita mãe lhe pergunta onde encontrar quem faça isso e Agenor se declara um “fechador de corpo” e que poderia fazer o trabalho em favor do jovem. Maria da Graça agradece e diz que pensará sobre o assunto.
No mesmo dia em que Maria visitou o vizinho, Louro chegou em casa severamente machucado. Havia aceitado um desafio na capoeira e, apesar da sua prática e destreza, tinha sido vítima de um mau jogador, um rival na batalha por Hermínia, que o atingiu com golpes não permitidos na luta. Isso bastou para que ela começasse a aceitar o “fechamento do corpo” do filho.
Cada vez mais apaixonado, Norberto resolve pedir a mão da moça em casamento. Para impressioná-la e aos seus pais, procura um agiota buscando o dinheiro necessário para a compra das alianças. Acerto feito, escolhe um par com aro mais grosso possível para que todos vejam que sua amada agora está comprometida. Jamais tira a aliança desde que teve o noivado oficializado. Exibindo-se para os rivais com a joia no dedo da mão direita, aceita e perde mais uma disputa para os maus jogadores da luta e chega machucado outra vez em casa. É quando Maria da Graça decide contar ao filho sobre a conversa com Agenor. Lembrando da história de Lampião, que também tinha o “corpo fechado” e sobrevivido a diversos ataques, o rapaz concorda imediatamente e, escolhendo o ritual dos pés no balde e com trancamento à chave, combinam o dia e o local com o ancião.
Ele passa a se sentir inatingível depois do cerimonial. Não há mais nenhum ferimento durante o trabalho nas obras, ou em qualquer outro lugar, nem doenças e nem mais golpes sujos que o alcancem nas provas da capoeira, vencendo todas após o fechamento do seu corpo. Diante de algum possível embate, sempre apregoa - “Eu tenho o corpo fechado, nenhum mal me alcançará”!
Não tendo cumprido o prazo para o pagamento do agiota, Norberto recebe a primeira visita de cobrança do explorador e a ameaça de que não será perdoado se não cumprir o acertado. Com apenas dois dias a mais recebido para arranjar o dinheiro, que sabe que não conseguirá, o rapaz não se preocupa. Afinal, nenhum mal o alcançará. O agiota, por sua vez, não quer problemas com a polícia, quer tão somente seu dinheiro e quando retorna, junto a quatro capangas que imobilizam o devedor, retira-lhe a aliança dizendo que aquela só paga a metade do que ele lhe deve, e que voltará para buscar o restante, concedendo-lhe mais très dias para se virar.
Louro não se abala. Tem o corpo fechado! Pedirá um empréstimo, trabalhará dobrado, conseguirá o dinheiro e tudo se ajeitará.
Seus rivais, e também aspirantes a pretendentes da Hermínia, ficam sabendo da história da agiotagem e resolvem contar aos pais da moça. Osvaldo Jorge, o pai, esbraveja e diz que não faltaram avisos sobre o futuro genro e determina que ela irá desfazer o noivado sob pena de ser mandada para fora do Rio, indo morar com os tios no interior de Alagoas. Ela chora, esperneia, diz que não terminará e o pai decide que no dia seguinte venderá a sua aliança e a colocará num avião rumo à casa dos familiares. Também insinua aos delatores que Norberto merecia é uma sova das boas. Os sujeitos se entreolham, sabem que o rapaz tem “corpo fechado”, que nada o atingirá, e não se manifestam.
Já em casa, Louro olha para a mão direita, desolado. Em lugar da grossa aliança que ostentava, há agora um vazio e a marca branca no seu dedo anelar. Pensa em Hermínia, no que dirá para ela se tiver que lhe pedir o anel de noivado de volta, pois, talvez, não tenha como pagar ao agiota. Tem uma noite cheia de pesadelos, mal se despede da mãe quando sai para o trabalho e muda o trajeto diário, pois não quer correr o risco de encontrar a noiva antes de ter a solução para o que lhe aflige.
Desce o morro cabisbaixo e pensativo, e ao final da descida avista os seus desafetos. Mas ergue a cabeça enquanto murmura - “Eu tenho o corpo fechado, nenhum mal me alcançará”!
Logo chegará à estação do trem que o conduz à obra na qual trabalha, conversará com o seu patrão e lhe pedirá um adiantamento, alegando que a mãe precisa de um tratamento que o serviço de saúde pública não oferece, e ele lhe atenderá, por ser considerado um bom operário. Ao atravessar para a plataforma de embarque, nota que seus inimigos o acompanham de longe e repete o seu mantra: “Eu tenho o corpo fechado, nenhum mal me alcançará”!
Quando vislumbra a locomotiva apontando na estação ele respira aliviado, pois os rivais não terão tempo de alcançá-lo. Embarca em meio ao habitual amontoado de gente, se acomoda como pode e segue com seus pensamentos: - Sim, tudo dará certo!
O trem vai esvaziando ao cumprir o itinerário e faltam poucas paradas para o seu desembarque. Quando chega ao seu destino, já está diante da porta dupla, aguardando que suas bandas se abram. Ao dar a primeira passada para fora do vagão, vê o sogro parado bem à sua frente, com um olhar frio e fixo, como se o esperasse. Num movimento rápido e pensando evitar um conflito com o futuro familiar, Louro tenta retornar, mas perde o equilíbrio e a porta automática se fecha no exato momento em que sua mão direita tenta forçá-la a manter-se aberta e tem seus dedos prensados entre as duas partes, mantendo-o preso enquanto o trem segue caminho. Pendurado pela mão, o rapaz é arrastado, chocando-se contra as paredes dos vãos da plataforma quando seus vagões passam pelas mais estreitas.
O ritual do fechamento de corpo escolhido requeria a nudez total, mas Norberto não despiu a vaidade de ostentar a grossa aliança de noivado durante a cerimônia, tornando uma pequena parte do seu corpo vulnerável. Pequena, mas suficiente para permitir que o mal o alcançasse, sem que ninguém lhe tivesse tocado.
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