A Escada
Esposa fazendo compras de Natal. Presente para as crianças, filhos, netos e sei lá mais quem. Ruas lotadas, cidade fervilhando e o calor de verão para aumentar o incômodo. O bar da esquina me dava uma visão privilegiada. Estava protegido de esbarrões, e atento a tudo. Uma cerveja e uma linguiça cortadinha com cebola reduziriam meu martírio.
Vem chegando um sujeito, maltrapilho, roupas pardas manchadas de poeira. Vai pedir dinheiro... Ou comida...
-Boa tarde, o senhor poderia me...
-Ih amigo, se for dinheiro, não tenho não! Me desculpe.
-Não é dinheiro não! Só queria comentar com você como é bonito aquele grafite que fizeram ali no muro em frente.
Confesso que cheguei ali e me sentei para fugir da multidão e realmente não havia reparado naquele grafite enorme que havia sido feito na parede lateral de um prédio antigo ali em frente.
Era uma escadaria de pedras engastadas umas nas outras, que dava um efeito tridimensional como se saísse do nível do solo e subisse aos céus. No alto via-se um portão de ferro dourado e brilhante e das nuvens ao redor viam-se anjos. A escada era tortuosa e estreita e num plano que parecia ser mais abaixo havia chamas e escuridão.
Por um breve período senti como se todo o movimento da cidade tivesse cessado para que eu pudesse contemplar aquele grafite feito com tanto realismo e detalhamento.
-Você subiria por aquele caminho? – perguntou o andarilho.
Olhei novamente, e senti calafrios. Era como se um vento frio saísse de dentro da própria pintura e fizesse os transeuntes apertarem seus ombros pensando no casaco que não trouxeram.
-Rapaz, acho que nenhuma viva alma teria coragem de subir por ali. Seria queda na certa. Talvez algum montanhista, alpinista ou equilibrista. Mas a maioria de nós não.
-Nenhuma viva alma...interessante. Talvez uma morta alma – sorriu com os dentes amarelos de tártaro e nicotina de cigarros baratos. - Mas veja bem, - ele continuou – ali parece ser a porta do Paraíso. Imagine toda a vida eterna e cheia de alegrias que deve haver ali.
-Isso de Paraíso deve ser algo muito complicado de se gerenciar. Há pessoas boas que gostam de silêncio e calmaria, e há pessoas boas que gostam de multidões e festas com som alto. Como ficaria o Paraíso?
-O Paraíso não é um lugar físico, você entende?
O sujeito parecia falar com propriedade. Parecia descendente de indianos, uma pele negra avermelhada, cabelos desgrenhados, pretos e lisos. Olhos castanho-escuros e uma barba pouco densa e já com algumas mechas esbranquiçadas e amareladas. Continuou:
- O Paraíso pode ser perfeito para todos que o merecerem. Os que buscam silêncio, encontram silêncio. Os que buscam festas, encontram festas. A partir dali já não há mais julgamentos. Todos os desejos serão realizados. Desde os que desejam duzentas virgens aos que desejam uma ilha deserta.
-Então o Paraíso não é um único lugar – provoquei – São vários lugares que se apresentam de forma diferente de acordo com os desejos da alma que lá está?
-É isso! Lembra daquela história do gato no quarto escuro? Ele está lá, e não está, e está em todos os lugares ao mesmo tempo!
-Já ouvi algo parecido. Não sei se isso é Quântica ou Filosofia, mas para mim são teorias malucas que ninguém consegue provar que sim nem que não...
-Exatamente! Da mesma forma que ainda não se pode provar a existência de Deus!
Tomei um gole de cerveja. Pensei um pouco:
-Como seria esse Paraíso, se, ao chegar lá encontrarei meus parentes, sendo que não gostaria de encontrar com todos eles, e tenho certeza de que alguns deles também não gostariam de me reencontrar na eternidade...
-Lá você só encontraria aqueles que você deseja encontrar.
-Estranho... E os outros estariam onde?
-Os outros estariam em outros Paraísos encontrando apenas com quem eles quisessem.
-Fica cada vez mais estranho... Seriam múltiplos “eus” encontrando com pessoas que gostariam de me encontrar, mesmo sem a minha vontade?
-Sim. Mas você não saberia dos outros “vocês” que estivessem se relacionando com pessoas que não lhe agradassem.
-Continuo confuso. Então existiriam outros “eus” fazendo coisas que eu não gostaria de fazer, e na companhia de pessoas que eu não gostaria de estar?
-Exatamente! Eu já estive lá! Não tendo mais corpo físico você pode estar em vários lugares e tempos ao mesmo tempo! E pode acelerar o tempo, voltar no tempo, pausar o tempo, como num controle remoto em um filme.
Fiquei com medo. Será que estava dando asas à imaginação de um louco? Será que se confrontasse suas ideias ele não se tornaria agressivo comigo? Será que saltaria de repente a mureta que nos separava e me apunhalaria no peito com uma faca enferrujada?
Fiquei calado por um tempo, pensando, avaliando os riscos. Não me parecia uma pessoa perigosa. Coloquei algumas rodelas de linguiça na boca para não prolongar mais o assunto. Ofereci algumas a ele em um palito. Ele as engoliu como se fossem pequenos comprimidos.
-Pense bem – ele continuou – Quantos amores passaram pela sua vida e você não aproveitou, porque não teve tempo de investir, porque estava ocupado com outras coisas, porque a janela de tempo foi muito curta, ou por que você estava comprometido? Todos estes amores estarão lá, no Paraíso, se assim você desejar. Poderão surgir aos poucos, pois a Eternidade é bastante longa. Ou poderão vir todas juntas, e serem muito amigas, e o adorarem com se você fosse perfeito. Talvez sejamos todos perfeitos no Paraíso...
-Agora entendo o que você está dizendo. O Paraíso é como um mundo virtual no qual você entra, e encontra só quem você quiser, no momento que você quiser, e bloqueia quem você quiser, e em que toda pamonha tem o sabor da primeira pamonha e traz o prazer da melhor pamonha que você comeu na vida, quando você estava mais faminto?
-Exato! Pense também nas paisagens, nos lugares que você foi e que nunca mais voltou, mas gostaria de ter voltado? Eles se materializam diante de seus olhos no exato momento do seu desejo. Os lugares que foram destruídos. Os prédios antigos que foram demolidos, os rios nos quais você nadava quando era criança. Estarão todos lá. Intactos como em suas memórias.
E os lugares que você nunca visitou seriam do jeito que você os imaginasse, ou seja, muito melhores do que os reais. E você sempre chegaria na época em que as flores estivessem florescendo, e os frutos estivessem maduros e saborosos. E todas lareiras, fogueiras e churrasqueiras, se acenderiam com a facilidade que um escoteiro as acende, ou apenas no desejar que isso acontecesse.
-Amigo, está interessante esta conversa. Você gostaria de comer algo? Eu pago!
-Se o senhor puder me comprar uma esfirra de carne daquelas ali – e apontou com o dedo de unhas sujas para a vitrine de salgados. Pedi. Ele aguardou sem conseguir esconder a ansiedade.
Tomei outro gole de cerveja e indaguei:
-Mas se o Paraíso é diferente para cada um de nós, então não seria como se estivéssemos sozinhos lidando com simulações de pessoas da forma que gostaríamos que elas fossem e lugares que nunca foram do jeito que imaginamos? Não seria tudo uma grande enganação? E os desafios da vida? Não é tão bom conseguir conquistar as coisas com uma certa dificuldade? E não nos dá um certo prazer, mesmo que velado, de possuirmos coisas que os outros não possuem, conquistarmos alguém especial que outros não conseguiram conquistar? Nos sobressairmos pelos feitos que outros almejaram?
-Se você gostar de desafios eles existirão lá também. E fãs, e admiradores de seus feitos.
-Mas que graça terá se eu saltar de um penhasco em um pequeno lago, sabendo que tudo correrá bem? Sabendo que não há risco de morte, ou de que algo dê errado?
-Você só saberá do que você quiser saber. O que lhe trouxer incômodo, infelicidade ou desagrado, você simplesmente não saberá.
-Agora que as coisas ficaram complicadas de verdade! Então se eu estiver com a mulher dos meus sonhos e ela estiver me traindo com um garanhão, eu nunca saberei?
-Se você não desconfiar disso, não acontecerá. E se desconfiar e não quiser saber, nunca saberá. Simples assim; será da forma que você quiser que seja.
-Você fala com tanta propriedade deste seu Paraíso, mas em pesadelos muitas vezes o que tememos se materializa também. Animais peçonhentos, lugares altos e estreitos nos quais mal conseguimos nos equilibrar. E se em nossos pensamentos paradisíacos materializássemos situações desagradáveis?
Chegou a esfirra. O garçom a entregou a mim, numa forma de confirmar que era eu que ia pagar por ela. Entreguei ao andarilho, e virei o rosto de lado para não ver a forma feia com que as pessoas famintas engolem o que comem. O acompanhei em silêncio com os meus petiscos.
Limpou a boca com as costas da mão. Agradeceu com um sorriso literalmente amarelo e um acenar de cabeça. Inspirou relembrando a pergunta que eu havia feito e continuou:
-Mas é para isso que Deus está lá! E Jesus, e Maria e os anjos, e todos os santos... Para impedir que o seu Paraíso não se transforme em um inferno pelos medos e temores que porventura surgirem.
-E se eu não for cristão? E se eu for ateu ou agnóstico?
-Eles também estarão lá. Invisíveis, mas te protegendo da mesma maneira, porque você foi bom, e mereceu estar lá. Ou na forma dos deuses da religião na qual você crê.
-Rapaz, vou te dar uma dica; não fale isso para qualquer um que você encontrar. Pode ouvir um longo sermão de te esquentar as orelhas! Deixa-me te perguntar outra coisa; e a respeito das pessoas queridas que ainda não morreram? Como a alma desencarnada se livraria dessa tristeza, dessa saudade e das preocupações das responsabilidades que ficaram pendentes?
-De lá você saberia deles, e os encontraria nos sonhos deles. E conversaria com eles. Só que a maioria das conversas seriam esquecidas por eles assim que despertassem.
-Mas a princípio os que me amam estariam tristes, não? Sentiriam a minha falta de uma forma ou de outra. Como eu faria para aplacar a tristeza deles?
-Como eu lhe disse. Visitando-os em seus sonhos. Eles sentiriam em seus corações que tudo está bem. E você poderia avançar no tempo e ver o que aconteceria com eles no futuro.
-E se eu descobrisse no futuro que um filho ou neto meu morreria num acidente? Isso também afetaria a minha paz!
-Estando no Paraíso a visão de morte muda completamente. Você perceberia que tudo continua. É como atravessar a porta da sala para a cozinha, e depois voltar com um balde de pipoca para continuar assistindo um filme.
-E se eu sentisse, mesmo assim a falta deles?
-Você poderia materializá-los lá no Paraíso a seu lado.
-Mas então eles morreriam aqui na Terra?
-Não. Eles estariam lá e aqui, e em vários lugares e tempos ao mesmo tempo, como todos nós estamos agora, neste exato momento. Vários vocês, nascendo, crescendo, vivendo, morrendo, e participando dos Paraísos de outras pessoas neste exato momento...
De repente levantou a cabeça olhando para a esquina e gritou:
-Ei! Isso aí é meu! Vá catar seus papelões e latinhas em outro lugar! Essa área é minha, cara!
E saiu correndo para espantar outro morador de rua que remexeu em seus pertences em um burro-sem-rabo estacionado ali na curva.
Não voltou. Lembrou-se de seus afazeres e que o dia era curto, e que daqui talvez não saísse mais comida nenhuma.
Fiquei com toda aquela conversa na cabeça. Olhei mais algumas vezes para a pintura no muro. Esses artistas de rua fazem coisas maravilhosas!
Terminei minha cerveja, paguei a conta, liguei para a esposa e vi que já havia duas ou três ligações não atendidas. Me apressei em encontrá-la na multidão.
Encontrei-a num banco dentro do shopping. Passou-me mais de uma dúzia de bolsas e sacolas. Fui carregando tudo aquilo até o carro. E voltamos para casa.
Não. Eu não morri naquela noite. Não estraguei o Natal de ninguém. Apenas fiquei pensando em toda aquela conversa confusa e em como aquele morador de rua conseguia se expressar tão bem!
E na TV, que ficava ligada apenas para preencher os raros momentos de silêncio entre as conversas, com a casa cheia, começaram a passar clipes de músicas antigas. E me atentei à tradução de Joan Osborne cantando “One of Us” ...