Meu Pai
“O cérebro é mais vasto do que o céu,
pois se os pomos lado a lado,
aquele o outro contém
fácil – a você também
(Emily Dickinson)
Sai do bazar e “atropelei” um senhor que vinha cabisbaixo pela calçada, rente às lojas. Ninguém caiu, ninguém se machucou. Perguntei se estava tudo bem, se precisava de alguma ajuda. Ele se recompôs, pediu desculpas pela distração, me olhou profundamente nos olhos, deu um até logo e seguiu seu caminho. Chocado, não consegui sair dali: por algum motivo fiquei com a sensação de que quase tinha derrubado no chão o meu falecido pai.
Olhei para o lado esquerdo da rua e lá longe ia ele, devagar, com as mãos no bolso e um cigarro no canto da boca. Meu Deus, um cigarro na boca? Quem ainda fazia isso? Não era possível, Papai faleceu há cinquenta e três anos e hoje ele teria mais de cem anos de idade. E como assim, ele não me reconheceu? Se bem que não tem como, afinal, eu tinha apenas 13 anos. O que ele viu, a pessoa que trombou com ele, foi um senhor meio calvo, com os cabelos e barba brancos, óculos com lentes grossas, rosto cansado, com quase 70 anos. Ele viu um velho.
Velho ou não, eu ainda corria diariamente. Disparei pelo meio da rua atrás dele, desviando de carros e pedestres que me olhavam como se fosse um maluco. Minha cabeça não parava de pensar. Se ele morreu, não envelheceu, é óbvio. Bobagem, isso só pode ser um tipo de alucinação. Projetar em alguém a última imagem que minha memória tem do meu pai. Mas por quê agora, tanto tempo depois?
Cruzei a última rua, parei para retomar o fôlego e baixar um pouco os batimentos cardíacos e lentamente me aproximei dele, por trás. Cuidadosamente, para não assustar e mantendo uma distância segura – coisa de carioca nestes tempos violentos – dei um bom dia e balbuciei alguma coisa sobre ter achado que ele era uma pessoa que eu não via há muito tempo. Ele parou, virou, me olhou e respondeu que estava tudo bem, mas infelizmente, nunca tinha me visto na vida.
Eu sei, a memória prega peças, ainda mais quando envelhecemos. Olhando com calma, notei claramente que sim, era muito parecido, mas talvez não fosse meu pai. Seus olhos eram verdes ou azuis? Ele parecia mais alto. Mais magro, com certeza e estava absurdamente vivo. A razão tomou de volta o seu lugar. Nos despedimos e cada um foi para seu lado. Não tive coragem de perguntar sequer o seu nome.
Quando cheguei em casa, desabei: abracei minha mulher e chorei em seu colo como se o mundo fosse acabar amanhã. Como um menino de treze anos de idade que perdeu o seu pai.
(Agosto de 2017)