Um Inadaptado no Céu

Morri... Não sei como, mas morri. Agora estou aqui, todo vestido de branco, rodeado de pessoas lindas, também todas de branco, numa planície imensa, verdejante, cheia de campos floridos, linda, linda... Hum, acho que isso é o céu. Estranho, mesmo... Como pôde um cabra da peste como eu, ex-cachaceiro, ex-boêmio e ex-arruaceiro nas cálidas madrugadas nordestinas, ter vindo parar no céu? Talvez possua um bom padrinho junto ao Filho do Homem... Ou, quem sabe, junto ao próprio Homem?

Já deve fazer alguns dias que estou aqui. Tudo bonito, tudo na santa paz... Bonito demais, paz demais... Sentadinho, contemplando as belas figuras brancas que passam por mim, me enviando doces sorrisos (ainda não consegui distinguir quem é homem ou quem é mulher por aqui, ou será que, como me diziam na Terra, anjos não têm sexo?), meu pensamento se volta para o mundo que acabei de deixar.

Na minha família, há filhos com suas vidas complicadas, há netos dando trabalho, em suma, há muitos abacaxis para descascar... Mas, tendo já batido as botas, estou fora dessa confusão toda e devo ficar feliz, pois tudo é paz por aqui. Passa uma suave brisa pelo meu rosto... Que beleza... Que beleza... Olha só: não sei como, mas percebo que fiquei surpreendentemente jovem, confirmando o que alguns espíritas afirmam: que, depois da morte, a gente se vê com a nossa imagem mais desejável. Bom, na verdade, eu nunca quis ser velho, sempre quis permanecer jovem. Por isso, me vejo belo rapaz!

E também se confirmam outras coisas que diziam: que a gente passa para o outro lado exatamente como é, com todos os defeitos e qualidades; ninguém vira santo de repente só porque passou desta para uma melhor. Por isso, ainda que me sinta um pouco intimidado pela pureza do ambiente, meu libidinoso pensamento voa na lembrança daquela morena do 2º andar, sempre com uma blusa decotadíssima e uma minissaia que, quando se curvava ligeiramente para entrar no seu carro, olhava para trás para me flagrar contemplando – com olhos cheios de luxúria – aquele moreno e arrebitado parque de diversões. Com certeza, ela falava para si mesma, divertida: "Olha, velho tarado, olha, que olhar não tira pedaço..." Vixe Maria, não devo pensar nestas coisas agora, pois parece que estou no céu, coisa que parecia impossível alcançar para um cabra que fez tantas estripulias na Terra!

Levanto-me e passeio pelas veredas floridas desta maravilhosa planície. Tudo muito belo, tudo paz... Mas, cadê a TV para ver o jogo do meu Vascão? Será que já acabou o campeonato? Me dá uma vontade danada de perguntar para os anjos que passam por mim: o Vasco foi rebaixado ou não? Mas creio que isso não seria recomendável: o céu é para conversar sobre coisas mais sérias. Cadê o meu computador para enviar os meus textos para o Cantinho das Letras e para saber se aquela minha doce amiga advogada (que não sabia, coitada, que, no fundo, no fundo, eu tinha uma vontade danada de dar um créu nela), continua agraciando os meus textos com os seus comentários tão inteligentes e bonitinhos?

E vou caminhando, vou caminhando, vejo-me livre, leve e solto, sem doenças, sem contas a pagar, etc... E completamente sem medos; afinal, que mais pode me acontecer, se já estou morto? Não merecia, mas estou no céu...

Aqui todo dia é só paz e beleza. Paz e beleza... Paz e beleza... Paz e beleza...

O céu é chato.

Santiago Cabral
Enviado por Santiago Cabral em 06/12/2023
Código do texto: T7948342
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