A Mão invisível de Deus
Essa história não possui nenhuma comprovação, ou qualquer intenção de propagar uma teoria conspiratória, foram fatos ocorridos de maneira separadas, ligadas por coincidências pouco relevantes que quando levadas para o campo da lógica, nos fazem automaticamente descarta-las como improváveis. Não sou entusiasta de lendas urbanas, e tenho a razão como um dos pilares que moldam as minhas convicções, mas confesso que a natureza destes eventos me deixou intrigado.
No último ano de faculdade eu estagiava na defensoria pública e tive a oportunidade de acompanhar um caso midiático de um jovem um pouco mais velho do que eu. Ezequiel de Moraes Silva, 25 anos, sem histórico de violência ou antecedentes criminais, preso em flagrante quando tentava enterrar no fundo de casa, dois meninos de 11 anos que acabara de matar a golpes de enxada. Fez tudo sem o menor planejamento. Alegou que os matou por que “troca troca” era pecado, mas que suas mãos foram um mero instrumento, que fios invisíveis o manipularam para que fosse cumprida a vontade de Deus.
O caso não ficou por muito tempo na defensoria, o escritório Almeida e Associados se propôs a assumir, mesmo réu sendo incapaz de arcar com os custos, o poder midiático de casos assim dá mais visibilidade, se alguém consegue ainda que abrandar uma pena para crime dessa natureza, consegue qualquer coisa, e são estes advogados que rico procura quando faz merda.
Ezequiel morreu na cela duas semanas depois, não houve região do tronco e da cabeça que não tenha sido perfurada, sequer passou pelo “tribunal do crime”. Seu caso foi explorado pela mídia durante dias. Num descuido dos carcereiros cerca de 30 detentos acessaram a ala do seguro em uma ação que durou menos de um minuto.
Uma caixa ficou nos arquivos, e o escritório não veio buscar, nada relacionado ao processo apenas copias de documentos, Certidão de nascimento, boletim escolar, relatórios de conselho tutelares, prontuários médicos e um caderno mofado de registros diários com uma capa grosseira, com nome feito a caneta: “A mão invisível de Deus”, na parte de dentro no canto esquerdo uma foto desbotada de um grupo de meninos de 15 a 18 anos com um homem segurando uma bíblia.
Quatro anos depois, formado e atuando em outra área, tomando um café na padaria, vi na tv um antigo colega de classe dando entrevista num programa policial sobre um desses casos que chocam a opinião pública.
Não sou de acompanhar esse tipo de notícia, mas procurei saber do que se tratava afinal de contas era bom saber como Alberto estava depois de todos estes anos, ao que me parece um ótimo defensor público. Tratava-se de um homem que matou a pedradas a própria filha de 12 anos. Além do defensor ser um conhecido, outro fato me chamou a atenção: o acusado alegava que suas ações foram movidas por linhas invisíveis que o controlava.
Entrei em contato com Alberto, de maneira casual com o pretexto de uma orientação sobre área criminal, ao mencionar sua entrevista na tv ele deu os detalhes do caso, o suspeito, Atos Evangelista do Nascimento chegou mais cedo do trabalho, encontrou a filha de doze anos dançando na frente da televisão e atacou a menina com uma peça de ardósia.
Não havia muito que fazer, prisão em flagrante, a confissão. Restava para a defesa, apelar para uma internação dado o depoimento confuso do acusado.
O histórico do assassino era semelhante ao de Ezequiel: pais drogaditos, cuidado por um parente, rua, FEBEM, rua de novo, noites em CDPs por furtos no centro e por fim a casa de recuperação “A Mão invisível de Deus”. Depois, sem registros de transgressões, apenas uma sutil escalada social, subempregos, um endereço de pensão e até um registro na carteira de trabalho. Atos parecia ter uma vida tranquila até o dia do crime.
Contei pro Alberto sobre a semelhança com o caso de Ezequiel, ele viu uma oportunidade de associar a um possível mandante. Procuramos no arquivo morto a caixa de Ezequiel. Por conta do final trágico na época não demos importâncias a fatores como uma lista de nomes num formulário preenchido a mão que mais parecia ser uma lista de chamada, com 15 nomes de meninos, havia grifos destacando os nomes bíblicos Adão, Atos, Davi, Ezequiel, Jacó, Melque e Sadrak, outro detalhe que não me atentei na vez que vi a foto, agora ainda mais desgastada, era a circular feita de caneta em cima da cabeça de alguns meninos como uma áurea de anjo, dentre esses identificamos Ezequiel e Atos.
Em duas semanas de pesquisa, foi constatado mais quatros casos envolvendo surtos violentos que aconteceram nos últimos cinco anos, os suspeitos relataram estar sob o domínio de linhas invisíveis e todos haviam passado pela Casa de recuperação, só dois foram identificados na foto e pelo nome Sadrak e Davi.
Tentou-se por meio da secretaria de saúde encontrar algum documento da Casa, A mão invisível de Deus que por um curto período de tempo teve convênio com a prefeitura, sendo rompido após denúncias de maus-tratos. O diretor, Seu Levítico Onório de Farias um homem cujo passado era uma incógnita, sabe-se apenas que fez dos alqueires de terra da família há poucos mais de sete quilômetros em um acesso próximo do quilometro 68 da rodovia Regis Bitencourt, um abrigo para almas perdidas, como costumava chamar seus residentes.
Seu Levítico manteve por um tempo a casa sem consentimento do poder público, até perder o apoio da igreja presbiteriana na qual era pastor, depois desapareceu. O endereço consta como terreno da prefeitura e tem apenas a ruína de um galpão tomado pelo mato, em uma de suas paredes um desenho desbotado pela ação do tempo de uma mão grande pairando sobre crianças.
A probabilidade é que já tenha morrido, por conta da idade, ainda assim não se sabe de qualquer registro de óbito, ou entrada em hospitais, tampouco ocorrências policiais em seu nome. Todas as informações que se tem sobre o homem constava apenas em um diário encontrado no arquivo morto num tabelião onde uma pasta com documentos da propriedade havia sido guardada, havia também um livro de registros onde a rotina da casa era anotada sem uma frequência cronológica. Tabelas com controle de doações, com nomes de mercados, açougues e até duas igrejas evangélicas.
Em contato com os prestadores de serviços não se teve muita informação quanto ao que era feito na Casa, quase sempre era um dos obreiros que os atendiam, Senhor Damiano Justino, atualmente aos 86 anos, preso a uma cama num lar para idosos com diagnóstico de Alzheimer.
A defesa de Atos concluiu que basear-se na terceirização da culpa de alguém cujo paradeiro era desconhecido, era inviável, e mesmo por que o acusado relatava que seu Levítico em sua memória era apenas um vulto disforme. O mais sensato seria optar por outras vias menos polêmicas e mais racional de que Atos era louco.
Sim, todos os casos estavam associados a um dos sete pecados capitais, os assassinos agiam no intuito de punir as vítimas pelos atos que julgavam profanos, havia por trás de todos a sombra incógnita de um mentor e motivações absurdas, ainda assim faltam elementos importantes que atestem estas conjecturas
Muita coisa se perdeu pela precariedade da preservação de arquivos e dados que poderiam nos dar uma exatidão da rotina da casa, da história de seu diretor e até se poderia haver algum possível seguidor aguardando um disparate para seu ato.
Tomado pela rotina de trabalho deixei a história de lado. Um dia um repórter policial me contatou perguntando sobre a caixa que ficara na defensoria. Consegui a cópia dos documentos e disponibilizei a ele. Falou-me sobre sua pesquisa baseada em crimes que flertavam com o improvável.
Vi nele a oportunidade de ter alguma resposta, meses depois enviei uma mensagem. Fez um levantamento hipotético de crimes cometidos por indução de hipnose, baseado num estudo pseudocientífico que alegava que alguns soldados agiam a partir de disparates, comportamentos ou palavras chaves que lhe levavam a cometer atos quase de modo automático.
Seu livro não foi aceito por nenhuma editora, o que lhe rendeu foi apenas um artigo em uma revista de curiosidades. “Pode um indivíduo plantar sobre outro uma semente que venha a germinar? Ou melhor, engatilhar uma arma repousada dentro da mente humana que com um simples click seja disparada? Ou mesmo a distância, exista uma força motora capaz de guiar atitudes e ações físicas contra a vontade do próprio dominado? São hipóteses possíveis…”
Talvez tudo isto seja apenas uma terrível coincidência e a especulação de que existiu um líder religioso perverso, que hipnotizava seus séquitos a cometer crimes com base nas escrituras, seja apenas especulação.
Penso que se alguém tem essa capacidade poderia ser usada de maneira mais proveitosa, talvez recrutando e hipnotizando para que estes meninos ocupassem posições de poder e maior efetividade em suas ações, já que é pra divagar sobre remotas probabilidades. Talvez seu Levítico não tenha morrido e sim mudado de fase e estes casos foram apenas testes. Talvez agora ele esteja criando monstros que atuem em posições estratégicas que possam fazer da caneta uma arma com poder muito maior, e, dado as coisas que presenciamos no cotidiano. Mão invisível de Deus segue efetivando com êxito seus planos mais obscuros.