Ggantia
Dois anos atrás passei por uma fase de sonhos estranhos. Depois, tive que mudar de cidade, por motivos profissionais, e os sonhos cessaram.
Num daqueles sonhos, minha mente viajou até a Ilha de Malta, onde fica o templo megalítico de Ggantia (1). Lá, o dia já havia amanhecido, mas ainda era cedo, o sol não havia se levantando e não se viam humanos nem animais no lugar. Sentei-me em uma pedra e fiquei apreciando a linda paisagem.
Não demorou, senti alguém me chamando no lado de dentro das ruínas. Caminhei até o portão de entrada, e estava trancado. Fiquei ali parado, sem saber o que fazer. Tive então a impressão de ouvir alguém rindo. Então entendi. Eu não estava ali com meu corpo de carne e osso, não precisava passar por um portão aberto, não precisava nem mesmo ir até o portão. Bastava eu passar através de qualquer cerca ou muro.
Quando entrei no templo, lá estava uma mulher enorme, seminua, sentada no chão sobre o que me pareceu ser um tapete feito com peles de carneiro. Tentei imaginar que altura teria aquela mulher se estivesse em pé.
— Dois metros e setenta e cinco centímetros, ela disse. — Antes que você pergunte, vou adiantando. Eu pesava uns trezentos e quarenta quilos, porque, como você pode ver, eu era baixinha e fofinha. Todos nós éramos gordinhos.
Fiquei admirado com a delicadeza daquela criatura, sua elegância e seu modo gentil de falar.
— A senhora é Ggantia? - perguntei.
Ela riu: — Não, Giordano, ninguém se chamava Ggantia. Meu nome era Talassa. Minha tátara-tátara-tátara-avó chamava-se Ganta. Acho que foi por isso que os humanos nos chamavam de gigantes.
Quem riu dessa vez fui eu: — De quantos ta-ta-ta-tavós a senhora está falando?
— Você tem o senso de humor e a educação de um verdadeiro filho de gigantes - ela disse. Acho que Ganta viveu umas vinte e cinco gerações antes de mim. E eu fui uma das últimas sirianas que viveram neste planeta. Mas vamos logo ao que nos traz aqui, pois daqui a pouco vai tocar o teu despertador e você vai ter que acordar e levantar-se pra trabalhar.
— Te chamei aqui para contar a história da minha raça. Fiquei sabendo que você começou a escrever um livro sobre um espírito humano que vai reencarnando e aprendendo lições, até superar todos os seus carmas e iniciar uma vivência de profunda espiritualidade.
A saga da tua personagem é interessante para ajudar no entendimento da teoria das reencarnações, mas tem um erro histórico, ou melhor, um erro pré-histórico. Você começa a história de reencarnações com um hominídeo arborícola, que morre de infarto cardíaco. No segundo capítulo pula para um neanderthalense que morre guerreando contra os sapiens. No terceiro capítulo, o espírito reencarna como um atlante plebeu, que descreve as construções megalíticas da cidade, onde se abrigam os atlantes nobres, e diz "Os deuses estão loucos". Por fim, começam as encarnações como humanos terráqueos.
Um espírito até pode reencarnar em raças diferentes, até porque na ordem cósmica todos os mamíferos hominídeos são uma coisa só, inclusive os símios. Mas, na tua ficção, o rapaz que admira as construções megalíticas e menciona os "deuses" não poderia ser um atlante. Para ser correto, você deveria dizer que era um mestiço de gigante siriano e homo sapiens. Você já vai saber porque.
Soube também que você assistiu na televisão uma história muito fantasiosa sobre o povo que construiu a surpreendente obra megalítica em Gobekli Tepe (2). A historinha da televisão diz a verdade quando fala que os construtores das ruínas desenterradas eram sirianos, mas eles não eram seres de natureza ofídica, nem poderiam ser. Em lugar nenhum desta galáxia os ofídios desenvolveram civilizações, muito menos fazem ou fizeram viagens interplanetárias. E aquelas ruínas não eram um templo. Eram a residência de um clã de sirianos cruzados com humanos.
Nós viemos de Rigus, um planeta da Constelação de Órion. Foi uma aventura sem maiores propósitos, e caímos no Planeta Terra por acaso, um feliz acaso. Sem condições de retornar a Rigus, e sem comunicação possível, aceitamos o novo lar e iniciamos uma nova vida, com vizinhos maravilhosos. Aqui encontramos um verdadeiro paraíso, uma natureza exuberante, maravilhas inigualáveis, águas preciosas em abundância incomparável, e aqui vivemos durante 60 mil anos.
Convivemos com inúmeras raças de hominídeos, inclusive os atlantes, construtores engenhosos. Eles talhavam as pedras com precisão, usando a tecnologia da ressonância sonora. Nós, sirianos, construíamos de modo grosseiro, para não perder tempo precioso com vaidades arquitetônicas. Ironicamente, algumas de nossas construções resistiram à Era do Gelo, mas dos atlantes não sobraram vestígios, apenas relatos reduzidos a lendas, e alguns sobreviventes, que governaram os povos do nordeste da África, iniciaram a civilização egípcia e depois desapareceram, juntamente com seus parentes sumérios.
Nossa raça nunca foi numerosa neste planeta. Chegamos a duzentos mil, mas em seguida desenvolveu-se em nós um espírito místico e monástico que nos levou à redução populacional. Nos últimos milênios de nossa estadia, enquanto os Sapiens se sobrepunham aos Neendertais, éramos menos de dois mil. Nunca ocupamos territórios exclusivos, sempre compartilhamos o espaço com outras raças antropomórficas. Nunca acumulamos riquezas. Assim, ninguém tinha nada a cobiçar de nós. Ajudávamos qualquer criatura em dificuldade, alimentamos inúmeros humanos durante suas crises, esquecemos as tecnologias espaçonáuticas.
Nosso tamanho avantajado também nos protegia. Aliás, nos protegeu até que chegaram os arianos, raça belicosa. Dizem que eram reencarnação de espíritos de pouca evolução espiritual provenientes de Capela. Os arianos nos combateram e usaram mentiras e meias verdades para induzir outros humanos a nos combater também. Fizeram tudo para nos exterminar. Nos assassinaram um a um, com a desculpa de que tirávamos a comida deles. Pura mentira, pois nós éramos vegetarianos. Na verdade, compartilhávamos o alimento com a caça e o gado deles.
Nós, gigantes, talvez pudéssemos vence-los, mas preferimos sempre apenas nos defender, mesmo sabendo que essa não é uma boa estratégia para uma guerra genocida. O que meus ancestrais fizeram para preservar-se foi iniciar uma miscigenação com humanos. As mulheres humanas adoravam os gigantes sirianos. Creio que a natureza feminina das humanas nem sempre aceitava a estupidez dos seus machos, e percebia o quanto éramos amorosos.
Interrompi: — Segundo consta, os nefilins eram o contrário disso, eram gigantes odiosos.
— Isso é outra história, bem diferente da nossa. Não conheci pessoalmente os nefilins, mas meus antepassados conheceram, e eles eram realmente terríveis, por isso nos retiramos da Ásia Menor, e em seguida também nos ausentamos do Oriente Médio. Não queríamos ser confundidos com eles. Há registros de sua existência na Bíblia e em alguns documentos guardados por monges em alguns locais ainda mantidos em sigilo. Brevemente, quando a humanidade tiver condições espirituais de aproveita-los, serão convertidos em arquivos digitais, e qualquer pessoa terá acesso a tais escritos.
Talassa prosseguiu:
— Eu tive dois maridos da raça siriana, e com eles gerei dois filhos gigantes. Depois, ainda jovem, aderi ao estratagema de preservar nosso legado nos misturando com os homos sapiens. Tive alguns maridos humanos e gerei trinta e três mestiços, em oito partos de trigêmeos, quadrigêmeos e quíntuplos. Meus pequeninos bebês eram lindos. Eu os amei, protegi e eduquei para serem pacíficos, cooperativos, empáticos.
Desaparecemos como raça logo depois da Era do Gelo, e os últimos sirianos puros sobreviveram até oito mil anos atrás.
Com a extinção, a maioria dos nossos espíritos retornou para Rigus, para reencarnar no planeta natal. Outros, como eu, preferimos permanecer neste planeta, incorpóreos, a fim de completar a missão de ensinar a humanidade a evoluir sua espiritualidade e alcançar a iluminação cósmica. Nossos poucos filhos mestiços e sua miscigenação foram fundamentais para a humanidade se tornar civilizada, mas sua influência ficou longe de desativar os genes da violência dos sapiens. O espírito belicoso dos capelinos permaneceu na humanidade e retardou a evolução espiritual de vocês por milênios.
Apesar de tudo, nosso trabalho está frutificando. Nosso legado genético e principalmente o cultural já está presente na índole da grande maioria dos humanos e esses herdeiros espirituais caminham na senda da iluminação.
Se observarmos os comportamentos humanos em geral, parece que é o contrário, que a humanidade jamais será uma espécie espiritualizada, mas isso se deve ao fato de que a índole humana foi alterada também pela influência capelina, gananciosa e combativa. Os herdeiros do espírito capelino não desistem das pretensões de hegemonia, e induzem centenas de milhões de humanos ao erro de dar prioridade à vida material, às vaidades do poder, aos prazeres da gula, do sexo e da violência. A cultura capelina nutre sentimentos de medo, ódio, ganância, inveja, essas coisas todas que obnubilam a luz amorosa do Cristo cósmico em suas almas.
Vocês, humanos da atualidade, começam a ter consciência dos conflitos espirituais a que me refiro, e percebem essa disputa como uma "guerra do Bem contra o Mal". Essa não é uma percepção exata, mas ajuda a entender certas coisas que acontecem no mundo de vocês, como as guerras, por exemplo, os genocídios, o escravagismo, o imperialismo, as manipulações políticas que mantém nações inteiras em atraso.
Tenha sempre isso em mente, Giordano: no final, vencerão os mansos e de coração puro. O espírito siriano prevalecerá sobre o espírito capelino. A humanidade já principia uma reversão dos seus valores. Em menos de um milênio a noção de vitória, riqueza, prosperidade será bem diferente da atual. A noção de felicidade será mais parecida com a vida monástica do que com o glamour do luxo e das maravilhas tecnológicas. A riqueza material sempre existirá, nunca desaparecerá completamente. Mas a civilização tecnológica está destinada à decadência. Formará um mundo à parte, parcialmente isolado da humanidade normal. As pessoas comuns aprenderão a não se deixar manipular pelas tentações, e viverão alegremente suas vidas pequenas, plenamente compartilhadas, cooperativas, pacíficas e iluminadas durante uma sequência de novas civilizações.
Talassa fez uma pausa e sorriu:
— Meu filho, acho que por hoje basta.
Um som irritante foi surgindo nos meus ouvidos, foi crescendo até me deixar atordoado, e acordei. Maldito despertador, sempre interrompe minha viagem astral.
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(1) Ruínas megalíticas de Ggantija: https://es.frwiki.wiki/wiki/Ggantija
(2) Gobekli Tepe: https://pt.wikipedia.org/wiki/G%C3%B6bekli_Tepe