Um caso de Amor na Capadócia
Nas encostas do Taurus, grande cadeia de montanhas que bordejam o planalto da Anatólia, na parte asiática da Turquia, exuberantes, densos bosques de coníferas, dão, de alguma forma, vida e magia a esta região semi estética. No centro, cortada de nordeste a sudeste pelo rio Kizil Irmak, tem-se a Capadócia, cujas planícies, de boas pastagens e densas florestas, abrigam uma população de pastores e agricultores.
Num desses planos ergue-se, a poucos metros do Kizil, suntuoso castelo. De qualquer uma de suas sacadas frontais descortina-se bela vista, proporcionada pelos imensos sicômoros que margeiam o rio. No auge da primavera, como agora, ricas inflorescências fazem o espetáculo quando, flores pedunculadas se inserem sobre seu eixo, fazendo da distância entre elas um mar de néctar, banquete inigualável para famintas abelhas.
No grande salão do castelo, o soberano Mirsul I, rei dos Hititas, era só euforia.
-Um filho! Finalmente, um filho!
A rainha estava radiante. Agora era torcer e rezar para que de seu ventre um homem viesse ao mundo. Para alegria de todos. E do rei, principalmente. Posto que um herdeiro o trono exigia. A futura mãe, num misto de alegria e apreensão vivia seus dias, pois, sabia que, segundo norma e tradição, gerar uma mulher significava sacrifício para a criança.
E tal sucederia caso um sonho não revelasse para Samira – a rainha – o sexo do esperado, meses antes do parto.
-Se é assim como diz, vou perder minha menina, pois será sacrificada logo após seu nascimento - dizia Samira a um espírito que se revelou um ancestral familiar de antiga geração.
-Não tema nem se atormente. Tudo será arranjado para que mal algum aconteça à criança - respondeu a imagem do sonho.
E assim foi feito. No castelo viviam escravas, algumas bem próximas de Samira. Uma delas, ciente de suas angústias e incertezas, decidiu ajudá-la. E o fez colocando em risco a própria vida. A rainha contou-lhe o sonho que tivera. Tinara, aia e confidente, então logrou êxito ao proceder, no momento do nascimento, a uma troca de crianças.
E assim, feliz, vivia Mirsul I os seus dias. Na certeza de que Sargão era o filho legítimo com que sempre sonhara. Somente as duas mulheres partilhavam este segredo.
Passaram-se os anos.
Passou o soberano ao futuro sucessor todas as artimanhas e estratégias de um governante poderoso e um guerreiro temível e respeitado no antigo reino. Um dia, chamou Mirsul I o filho a sua presença.
-Diga-me, o que sabe sobre a Babilônia?
-Tenho aprendido bastante - respondeu Sargão. - A Babilônia é o mais importante centro cultural da Macedônia.
-Fale-me da Síria.
-Sim, meu pai. Divide-se em duas grandes regiões naturais: a Assíria e as terras altas da Mesopotâmia.
-E que povo será governante dessas terras em futuro próximo?
-Nós, os Hititas. Assim meu pai tem me mostrado. E para isso me tem treinado. E assim será, ou não me chamo Sargão, o futuro rei dos Hititas.
Mirna, a filha legítima de Mirsul I e Samira, vivia sua vida simples e despreocupada junto aos pais, agricultores, a oeste da Capadócia. Felizes, posto que satisfeitos dentro dos limites que sua condição de vida lhes proporcionava naquela terra distante, não desconfiavam que pudesse Mirna ser filha de uma rainha. Viviam ao lado de um sangue nobre e sequer imaginavam.
Para afastar de vez a dessemelhança, além de alguns traços físicos que, por coincidência ou não, lhe aproximavam dos pais, tinha também a forma de vida. Natural. Ao ar livre. Que em comum desfrutavam. Era, pois, o azul do sangue imperceptível característica.
Nas idas e vindas de um monarca deparou-se Mirsul I com uma situação mais do que rotineira em sua forma de governar. Prendeu, julgou e executou, por sonegação de impostos, Arcádio, o esposo de Tinara. E, por maiores que fossem as insistências, sem nexo e incompreensíveis na visão de Mirsul I, ele não cedeu e manteve a pena.
-Não consigo compreender a razão desse seu interesse em poupar a vida deste sonegador. Tem dado enormes prejuízos à nação Hitita com suas trapaças. Deve haver uma razão muito forte para que me peça tal coisa. Não vai se explicar? - quisera saber o rei, de sua esposa.
- É o marido de minha melhor amiga.
-Para mim isto não é razão suficiente; reagira irritado Mirsul I. -Certo estou de que tem um segredo que não me quer revelar. Mas, não levará muito tempo oculto porque vou descobri-lo.
Passou a ser enorme a preocupação de Samira dali em diante. Só não tão grande quanto o ódio que passou a nutrir Tinara em relação, não só à rainha, mas, e principalmente, ao rei e toda a sua corte. Jurou vingança e assim o fez. O primeiro a saber foi o principal envolvido, ou seja, o próprio Sargão. Por pouco não teve Tinara a vida arrancada em função do seu atrevimento. Mas, ela foi, segura do que estava fazendo, e conseguiu convencer o príncipe da grande trapaça.
-Abaixe as suas calças; falou para ao príncipe, sem temer as consequências.
-Como ousa?
-Não precisa fazê-lo se não quiser. Só me referia ao sinal que possui abaixo de sua nádega.
-E o que tem a ver isto com o que veio me dizer? Saiba que posso mandar executá-la por traição.
-Certamente que pode. Mas, sabia que fiz o que fiz a pedido de sua mãe em resposta a um sonho que teve? E reconhece que resultou na felicidade de todos os envolvidos? Só o faço para me vingar de seu pai por ter-me tirado um grande amor, e meu maior sustentáculo. Não me importo mais com a minha vida. Podem matar-me se quiserem, se acham que fiz algo errado.
-Podemos manter ainda este segredo.
-Tarde demais; Mirna e seus pais já foram comunicados. Tudo que precisa fazer agora para confirmar minha confissão é ir comigo à presença da filha legítima de seus pais e a verdadeira herdeira do trono da nação Hitita.
E assim fizeram. E a maior prova, ou seja, o sinal de nascença de Sargão, lá estava. No corpo da mãe verdadeira. Em tudo idêntico. Tanto em formato, dimensão e, o mais incrível e inegável: no mesmo local. Não restavam agora dúvidas. Se as evidências físicas convenceram Sargão, mais ainda o fizeram os trejeitos e a personalidade de Mirna. Tão semelhantes àquela que ele tão bem conhecia.
A simples felicidade. A satisfação no usufruto de uma forma de vida que dispensava ornatos e glamour palacianos, tão presentes no dia a dia da vida de Sargão, compunham em Mirna uma beleza pura e diferenciada. Muitas vezes ali retornou o prometido ao trono Hitita para gozar as delícias de uma vida simples, mas que lhe deixavam encantado. Acabaram apaixonados. E Mirna correspondeu de igual maneira.
Não fosse a firme decisão de Tinara em levar avante sua sede de vingança, teríamos já o fim desta história, repleto de felicidade para todas as partes envolvidas. Mas, quis o destino que assim não fosse. Mirsul I, carcomido pelo ódio e pelo desespero, jurou de morte a todos que o haviam enganado. E começou por Tinara. Por uma falsa promessa de poupar-lhe a existência caso levasse a sua presença a filha, ordenou o seu assassinato logo após a captura de Mirna. Esta, mandou que atirada fosse à clausura da solitária até que o sofrimento da solidão e da tristeza a conduzisse também à morte. Sequer quis conhecê-la. E parece que isso pouco ou nada serviria para atenuar sua revolta.
Começou então o atroz desentendimento entre Sargão e o monarca traído e inconformado. Samira logrou livrar-se do mesmo destino infeliz de Tinara ao fugir do castelo em um resgate noturno empreendido por Sargão com o apoio de uma guarda especial que conseguira arregimentar.
Revoltado ainda mais, apelou Mirsul I para o amor que sabia existir entre os dois jovens. Torturou Mirna ainda mais, privando-a do alimento, dando-lhe somente água. Esquálida e enfraquecida, fez partir o coração do príncipe que, quando a viu, chorou de tristeza e piedade. O rei permitiu esta visita na esperança de que, penalizado, Sargão lhe entregasse a razão principal de seu ódio: Samira.
-Não aceite, meu amor! Não aceite o que seu pai está propondo; balbuciou Mirna, sofregamente.
-Ele não é meu pai! - disse Sargão, secando as lágrimas.
-Tampouco é Samira a sua mãe verdadeira. Mas sei o quanto a ama. Não a entregue a Mirsul, ele irá matá-la sem piedade. Meu fim está próximo. Vá, meu grande e único bem. - Dizendo isso, desmaiou nos braços do príncipe.
Desesperado ante o estado da jovem, decidiu Sargão trazer Samira até a presença do rei, porém, resguardado por um regime que o próprio Mirsul I ajudara a formar. E que o ódio e o desespero fizeram-no esquecer.
Ao lado do rei, com efeito, existe um organismo ao qual devemos atribuir origem indo-européia: uma assembléia de membros da casta dirigente. É ela que sanciona o advento do novo soberano; jura-lhe fidelidade, mas recebe dele um juramento. Bem entendido, é o soberano que procura organizar, em vida, a sua sucessão.
Para esta finalidade é o seu filho apresentado à assembléia e obtém dela, de antemão, um juramento. Mirsul I fizera isto em favor de Sargão.
A superioridade teórica da assembléia assinala-se igualmente pelo seu privilégio jurídico.
Sendo assim, estaria Mirsul I cometendo assassinato, tendo como motivo um fato que ele jamais conseguiu provar junto à corte jurídica.
E levado por uma simples intriga cuja causadora, agora morta, enterrou para sempre.
Foi este o respaldo de Sargão junto à assembléia. Garantindo assim a vida de Samira, o trono Hitita e o amor de Mirna.