UMA TRAMA DE NÓS ESCARLATES
No entardecer de uma casa isolada, onde os sussurros do passado ecoavam entre móveis empoeirados e retratos antigos, repousava eu, num sofá desgastado, dormindo, sonhador e inquieto, até que, de súbito, despertei.
A pálida luz da manhã derramava-se na sala, delineando de forma sutil a figura enigmática de uma mulher de cabelos ruivos, cujas vestes ecoavam o fogo de seus cabelos flamejantes. Seu semblante, tímido e doce, emanava uma simpatia tão profunda que parecia ter sido resgatada de velhos tempos perdidos.
Como num devaneio febril, minha mente foi cativada por aquela presença singular, como se um véu de encanto se abatesse sobre mim. Não pude conter minha curiosidade e, em um sussurro inquieto, indaguei:
— De onde vens? E o que desejas?
Um silêncio profundo se instalou. Como se sua mente se entrelaçasse em teias de confusão, e realidade e ilusão dançassem um tango misterioso em seu íntimo. Após um longo intervalo, no qual me perdi nos detalhes de seu vestido escarlate e no emaranhado de seus longos cabelos, ela finalmente encontrou voz:
— São fantasmas. Espíritos velhos que me atormentam há tanto tempo... — Ela hesitou, como se lutasse contra as vozes internas que a instigavam. — Por favor, perdoe-me, eles... eles se intrometem em meus pensamentos e palavras sem serem convidados.
Eu, que sempre fui cético e confiei somente no que meus olhos podiam perceber, rendi-me às palavras da mulher enigmática, pois a veracidade de suas afirmações estava inscrita de forma indelével em seus olhos, íris tingidas em um vermelho profundo, como se fossem o espelho de seu sofrimento e sua conexão com o indizível. Cada traço de sua expressão carregava a autenticidade de quem havia navegado por dimensões sombrias e desvendado segredos insondáveis.
— Às vezes, eles sussurram em meus ouvidos como sombras do passado, e em outras ocasiões, irrompem como súbitas tempestades — continuou ela, seu olhar fixo no abismo de suas próprias lembranças.
Ela então implorou por minha ajuda, seus olhos marejados de angústia, alegando que seus cabelos estavam emaranhados no que ela chamou de nós pactuais, alguns nas pontas, outros mais profundos, como lembranças ancestrais aprisionadas em sua vasta cabeleira ruiva.
— Por favor, você pode me libertar desse tormento? — suplicou, com uma voz trêmula que parecia ecoar através dos séculos.
Eu estendi minha mão trêmula em direção a uma tesoura que repousava sobre uma antiga mesa lateral, suas lâminas ainda amoladas, apesar de mais antigas que eu mesmo. Ela estava ali, como se aguardasse por esse momento desde que fora fabricada.
O peso da responsabilidade parecia esmagador, como se eu estivesse prestes a desvendar segredos cósmicos entrelaçados nos nós emaranhados dos cabelos daquela mulher enigmática. Com a tesoura em mãos, comecei a desfazer os nós com um cuidado meticuloso, como se cada corte abrisse um portal para o desconhecido.
Cada fio que se soltava era como um suspiro de alívio escapando das profundezas da alma torturada da mulher. Cada nó desfeito era uma libertação, um passo mais perto de romper as correntes que a aprisionavam.
Mas então, quando eu acreditava já estar perto de completar a inusitada tarefa, a mulher, com um olhar carregado de determinação e angústia, quebrando o silêncio que se estendia naquela sala imersa em mistério, fez um pedido, ainda mais inusitado, que ecoou como um suspiro arrepiante.
— Por favor, corte um pedaço de minha roupa. Sinto que só os nós não estão só em meus cabelos. De certo esta peça está conectada a esses seres que me assombram.
Diante dessa solicitação desconcertante, hesitei por um momento, meus dedos ainda trêmulo segurando a tesoura, enquanto considerava as implicações desse ato. A roupa que ela vestia parecia carregar uma energia sinistra. E desvendar o corpo dela era como adentrar um santuário proibido, um ato que se aproximava de um sacrilégio diante da pureza que emanava de seu interior, além das sombras que a envolviam, como um astro brilhante coberto de nuvens negras. Minha própria humanidade, tão imperfeita e mundana, parecia minúscula diante da figura que se revelava diante de mim. Ela transcendia a mera mortalidade, algo mais próximo de um ser encantado, uma fada perdida que havia atravessado os véus entre os mundos, ou mesmo uma deusa ancestral que reinava sobre os recantos inóspitos e ocultos da existência.
Mas a angústia em seus olhos era palpável. Não havia como recusar um pedido que parecia ser o último recurso para aliviar seu sofrimento. Com um movimento cuidadoso, levei a tesoura até o tecido de sua roupa e fiz o corte.
Enquanto a lâmina da tesoura atravessava o tecido, um arrepio percorreu toda a minha espinha, como se eu tivesse despertado em mim mesmo forças antigas e adormecidas. O tecido, à medida que se rompia, emanava uma luminosidade fantasmagórica, como se estivesse liberando os entes que aprisionava.
Perto do final da tarefa, a mulher soltou um suspiro longo e profundo, como se finalmente sentisse um peso sendo retirado de seus ombros, e seus olhos encontraram os meus com gratidão e alívio. Foi nesse momento que percebi que aquilo não era apenas uma simples tarefa, mas um profundo ato de redenção, não apenas para ela, mas também para mim.
Então a peça que eu cortava, uma última tira de tecido vermelho, ganhou vida com uma intensidade arrebatadora. Como se um organismo vivo e palpitante estivesse preso naquelas fibras, pulsando e se esticando em sinistra sintonia com os segredos sombrios que o envolviam. Cada esticada parecia um suspiro do próprio universo, uma manifestação do desconhecido que desafiava todas as leis da física conhecidas.
À medida que eu cortava, o tecido desfiado continuava a se esticar, elevando-se lentamente na direção do teto, como se estivéssemos aprisionados em um pesadelo lúgubre. Era como se o próprio espaço-tempo cedesse à força sinistra daquela peça de roupa, e eu me sentia um intruso em uma realidade distorcida que parecia não ter fim.
E então, no clímax desse momento transcendental, a verdade se desvendou de maneira inquietante e avassaladora. A mulher, completamente despida, como uma belíssima pintura renascentista, desapareceu diante de meus olhos atônitos. Seu ser se desfez em uma névoa etérea, como se nunca tivesse existido neste plano terreno. Seus olhos diziam apenas uma única palavra:
— Obrigada.
Na palma de minha mão, restou apenas o tecido desfiado, que também desapareceu lentamente, como se fosse um sonho efêmero que se esvanecia com a luz do dia.
Uma sensação avassaladora de assombro e admiração tomou conta de mim. Uma sensação avassaladora de triunfo e alívio percorreu meu corpo, como se eu tivesse decifrado um enigma ancestral que desafiava a lógica e a razão.
Meu coração palpitava com uma alegria que transcendia palavras e se desdobrava em um êxtase indescritível. Minha alma vibrava em sintonia com o desconhecido que havia desvendado. Era como se eu tivesse mergulhado nas profundezas sombrias da existência e emergido como um vitorioso.
Minhas mãos tremiam, e meu corpo estava envolto em uma onda de empolgação que parecia não ter fim. Eu havia testemunhado a liberação de um espírito aprisionado em uma dimensão desconhecida, uma jornada que me fez questionar a natureza da realidade e a interação entre o mundo tangível e o sobrenatural.
Essa experiência me marcou para sempre, uma narrativa que se inscreveria em minha alma como um capítulo ecoando mistério e redenção ao longo dos anos.
Eu permaneci ali, no centro da sala, com o eco dos eventos reverberando em minha mente.
E assim, com o coração pulsando de gratidão e coragem, continuei em minha própria caminhada em direção ao horizonte desconhecido, onde cada sombra esconde um enigma, e cada enigma oferece uma promessa de redenção. Afinal, nas noites onde o mistério se revela, descobrimos não apenas inefável, mas a verdadeira essência da existência, onde o sobrenatural se funde com o cotidiano, onde os heróis são forjados nas chamas das descobertas.