EU MATEI PAPAI NOEL!!!

Eu, por mim, quando menino de nove anos, desisti de acreditar na existência de Papai Noel, aquela batida estória do bom velhinho que distribuía presentes a todas as crianças, à noite, entrando nas casas pelas chaminés. Razões várias eu tive para essa decepção: primeiro, não tinha chaminé no nosso barraco e depois, o mais importante, porque esse velho gorducho jamais me deu um presente em todos os natais de minha infância. Tudo bem, talvez ele não tivesse ido ao barraco onde morávamos por não haver chaminé, então, certamente, não encontraria uma maneira de chegar ao cômodo onde eu dormia com mais cinco irmãos. Isso, contudo, não era motivo suficiente para fazer uma criança compreender e aceitar passivamente. Pelo menos para mim, Papai Noel não era verdadeiro, não passava de um engodo, de uma incomensurável mentira dos adultos. Apesar disso, no entanto, como o meu coração de menino pobre conseguiria entender por que razão os outros meninos, os filhinhos de pais abastados, ganhavam brinquedos nos natais e eu não? Será que o velhinho que o povo afirmava ser tão bom só era bom mesmo e existia apenas para os ricos? Por quê? Indagações impossíveis de responder a uma criança.

Cresci com esse trauma tormentoso, misturando quimeras infantis com realidades da maturidade e enveredei pela vida enfrentando os leões do mercado de trabalho. Casei naquela ânsia muito humana de ser feliz, de constituir um família bonita e ser um cidadão de bem capaz de contribuir para o progresso e a construção de nosso País. Desse casamento nasceram gêmeos. Nesse período do meu viver eu estava em condições, ao menos, de proporcionar à minha família, posto que bem empregado numa repartição pública, alguns natais verdadeiros, sendo eu mesmo, lógico, o Papai Noel a quem esperei ao longo de minha insignificante meninice. Comprava os presentes, punha-os aos pés da colorida árvore iluminada e passávamos a noite de Natal com sorrisos e abraços. Mas, por vezes, sozinho nalgum recanto do meu lar, escondido nas sombras, eu chorava, me sentia triste, excluído, sei lá por que! O garoto faminto e sem presente dos natais de outrora voltava à vida quase num súbito e me perseguia. Contemplando aquela criança maltrapilha que aguardava um presente do velho gordo de vermelho, as lágrimas desciam grossas e abundantes.

Nas festas natalinas do ano passado, após todos esses trâmites usuais do momento confraternizador, fomos dormir. Na cama, minha esposa disse, rindo feliz, que pretendia me fazer um surpresa,e por mais que eu insistisse, não contou qual era, evidente. Por volta do início da madrugada, acordei sobressaltado e chorando por causa de um pesadelo horrendo, do qual não recordo. E também ouvi um barulho na sala. Estranhei. Olhei vagamente para minha esposa sob o cobertor amarfanhado, que pareceu-me dormir de forma diferente, esquisita, no entanto não dei importância a isso, algo nada natural ocorria no recinto do meu lar e eu precisava ver de que se tratava, cuidar de minha família. Preocupavam-me, sobretudo, os meus filhos que dormiam no quarto contíguo à sala. Então, cauteloso, peguei o meu revolver que conservava na cabeceira e, pé-ante-pé, tudo fazendo para evitar barulho pois não queria assustar minha esposa, dirigi-me ao local de onde escutava o remexer de passos e a intermitência de outro barulho indefinido e, de longe, mesmo na escuridão em virtude de não gostar de dormir com luzes acesas, avistei a janela da sala aberta e um vulto que se esgueirava sorrateiro carregando objetos. O coração num ritmo enlouquecedor, um amontoado de histórias sobre violentos ladrões arrombadores de casa em minha mente, o temor de ser agredido, a situação de pavor que vivia naquele instante, todos esses acessórios instigantes ao mesmo tempo contribuíram para o único tiro que disparei. Ouvi um gemido e um grito. O primeiro eu percebi ser oriundo do invasor, mas o segundo, por mais estranho que pareça, veio do lado de fora da casa. Corri para a janela, agora ouvindo tilintar de sinos e bufar de animais, além de uma ou duas vozes parecendo infantis. Quase sofri um enfarto ao vislumbrar o quadro que se me deparou: vi o trenó de Papai Noel estacionado no espaço, um pouco acima do telhado de minha casa, todas as renas lá se mexendo cheias de ansiedade e dois caras vindo como que voando de lá em minha direção. Mostravam-se apavorados. Passaram pela janela e foram direto para o corpo que eu imaginava pertencer a um ladrão. “Você matou Papai Noel!!!!”, gritaram ao mesmo tempo. Fiquei estarrecido. Fui olhar de perto...era ele mesmo...só que...esquisito...não tinha barba, seus cabelos não eram brancos, ao contrário, mostravam-se louros e longos. “ Você matou Papai Noel!!!”, repetiram as criaturas pequeninas, enquanto as renas lá no alto continuavam a espernear porque instintivamente tiveram consciência do acontecido, os sininhos badalando em meus tímpanos...e eu comecei a chorar. As pequenas criaturas, olhando-me admoestadoras, carregaram o corpo de Papai Noel, voando até o trenó, onde o colocaram, gritaram ordens para as renas e eles se foram na direção de uma estrela.

Fui até a escrivaninha, peguei o telefone e, num choro convulso, liguei para a polícia, relatei o repentino e inesperado ato e voltei para o quarto para aguardar sua chegada. Minha esposa permanecia na mesma posição sob a coberta, e eu achei melhor não incomodá-la. Claro, jamais cheguei a compreender por que me colocaram uma camisa de força quando eu comecei a gritar desesperado, sem parar: “Eu matei Papai Noel!!!, eu matei Papai Noel!!!” Nem até hoje, preso nesse cubículo, barras de ferro no lugar da janela, recebendo a visita diária de um psiquiatra que me aplica um monte de psicotrópicos, entendo por que minha esposa desapareceu de sob a coberta e não foi encontrada em lugar nenhum da casa.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 21/12/2007
Reeditado em 26/12/2007
Código do texto: T787157
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