O Beijo da Vovó

Recebi um convite para esta festa: aniversário de oitenta anos da matriarca de uma família importante. Na verdade, a família não é nada importante, apenas rica. Bem, para muita gente, isso importa o bastante.

Sendo eu um homem de classe média, quase sempre ignoro os convites que recebo. Festa de pobre é um porre: música alta, pessoas gritando, comida ruim e, no final, sempre tem alguém vomitando depois de encher a cara. Mas aqui, não há nada disso. A música é de bom gosto, as pessoas conversam civilizadamente, a comida é um espetáculo e a bebida nem se fala.

Dona Ermínia Scornnavaca (a Vaquinha, para os íntimos) é uma senhora muito generosa. Generosa com os membros da sua família, pois para os seus funcionários, a velha é uma tremenda muquirana: paga um salário insignificante e ainda possui um amontanhado de processos trabalhistas que deixam claro a sua desonestidade como patroa. Ela possui um império. É dona de dois supermercados e ainda conta com uma fazenda e mais diversos imóveis espalhados pela cidade. Tem três filhos, que são três fracassados. Todos são casados com mulheres belas, igualmente inúteis e interesseiras. Nesta noite, a família toda está reunida, e dona Ermínia é bajulada como nunca. É evidente que o motivo de tanta bajulação não é por conta do amor que dizem sentir por ela, e sim por conta das mesadas que a velha, rigorosamente, oferece aos filhos e noras; caso contrário, estariam todos passando fome.

Estou sentado sozinho. Não tenho com quem falar. É claro que não fui convidado. Só estou aqui porque sou amigo pessoal do amante de uma das noras de Ermínia. O Ricardão tinha o convite em mãos, mas vacilou em cima da hora, então me concedeu a honra. Chega a ser engraçado, pensei que todos ficariam me observando por eu não pertencer a esta bolha, mas de fato minha presença aqui vem sendo menos notada que a presença de um pianista de restaurante. Então aproveito para ficar à vontade e tirar a barriga da miséria.

É chegada a hora de cantar o Parabéns. Fico também de pé. Os filhos, as noras e os netos ficam na mesa junto da matriarca. Durante a canção, noto que a velha olha melancolicamente para as três noras, acho que ela percebe a falsidade implícita em seus olhares. “Muitos anos de vida…”, elas cantam, mas tenho certeza de que ficariam felicíssimas se hoje fosse o último dia da sogra nesse mundo, pois todos sabem que elas, e até mesmo os maridos, são loucos para botar as mãos na herança polpuda. Bem feito pra você, Vaquinha. Está provando do próprio veneno. Todos nós aqui sabemos que há muitos anos você também se casou por interesse, e ainda teve a sorte de perder o marido razoavelmente cedo.

A canção de Parabéns chega ao fim. Os filhos abraçam a mãe, depois as noras fazem o mesmo. Os outros inúmeros presentes aplaudem fervorosamente. São um bando de puxa-sacos. Dona Ermínia parece mais constrangida do que emocionada. Volto a me sentar, ansioso para comer um pedaço do bolo que está sobre a mesa da aniversariante. Mas antes, temos mais uma demonstração ridícula de “amor”:

— Homenagem à minha querida Vovó… — diz o neto caçula, dando início à leitura de uma carta.

O netinho, vestido feito um homenzinho (com gravata-borboleta e gel no cabelo), recita um monte de baboseiras. A velha, pela primeira vez, se emociona de verdade. Ao fim da carta, Ermínia está aos prantos, e o neto, tímido, vai para junto dos pais. O pai, também emocionado, abraça o filho. A mãe, sorrindo artificialmente, segura-o pelo braço e diz:

— Agora dá um beijo na sua vó.

Putz, o menino balança a cabeça negativamente, eu vi! A mãe fica nervosa e passa a insistir. O clima fica tenso. A maioria das pessoas não percebe, mas eu estou atento. Então ouço ela dizer:

— Filhinho, o seu aniversário está chegando, se você não beijar a sua vó, ela não vai te dar o Playstation 5.

Perante o forte argumento, o menino se dirige à avó. Ela o recebe de braços abertos e emocionada por meia dúzia de palavras escritas sabe-se lá por quem. Levando em conta o intelecto dessa gente, posso apostar que o texto lido pelo garoto tenha sido tirado da internet.

Começo a sentir pena do menino, ele vai ter mesmo que beijar a face da avó. Beijar o rosto da avó é tão ruim quanto beijar bunda de mulher gorda. Ninguém sente prazer em beijar uma coisa flácida, úmida e malcheirosa. Pobre garoto, acaba de encostar os lábios no rosto da velha. Dona Ermínia sorri com o gesto, já o neto…

Bhuuuur!!!

Ah, meu Deus!

Um bando de bajuladores acode a velha. A mãe do menino entra em pânico, o ato escatológico do filho pode influenciar as decisões de Ermínia durante a elaboração do testamento. Sobrou até para o bolo, que desperdício! Preciso tirar uma foto antes que este circo acabe.

Click. Pronto, vou enviar para os grupos agora mesmo, uma foto da Vaquinha com o seu neto Porquinho. A legenda será: “A elite me dá nojo”.

Renato A
Enviado por Renato A em 24/08/2023
Reeditado em 24/08/2023
Código do texto: T7869315
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