O "TESTAMENTO"

O "TESTAMENTO"

O velho, muito velho, olhava com ar curioso a menina na beira da cama dele... quase não dormira, mas isso pouco importava, parece que a Vida -- naquela idade, 92 longos anos -- era eterno "aguardar" pelo desenlace final, Destino de tudo e todos. Não resistiu:

-- "Alice, o que faz aqui, tão cedo" ?!

-- "Mamãe mandou "eo vim vê" se você JÁ MORREU" !

-- "Oh, quanto gentileza da Maria José... e onde estão seus irmãs e primas" ?

-- "Dormindo, hoje não tem aula, é dia da cidade" !

Ora, ora... era mesmo ! Dia da Padroeira... quantos anos fazia que não o convidavam, ele que já fôra "a alma" da Festa, o diretor dela ?! Nem lembrava, fazia muito tempo ! A menina continuava a olhá-lo, insistente,os olhinhos fixos de quem vê inseto raro, diferente.

-- "Huumm... ninguém vai trazer meu café, estou com fome" !

Ela nem se mexeu... poz os bracinhos no espaldar do pé da cama rococó, descansou o queixo neles e "metralhou":

-- "Vovô, o que você vai me dar... de herança" ?!

O velho explodiu numa gargalhada, fazia tempo que não ria.

-- "Que estória é essa, "Lili", de onde saiu essa idéia" ?!

-- "Tia Jô" nos disse que cada um de nós vai ganhar alguma coisinha, quando você morrer" !

-- "Ooohh, Maria Joana sempre foi prática... e porque tua mãe não vem me visitar ? Nem tua tia" ?!

-- "Elas têm medo de ver a Morte... eu não tenho" !

-- "Menina corajosa... só por isso vais ganhar o meu "Fusquinha" amarelo. É de estimação, nunca deixei ninguém dirigí-lo" !

-- "Não sei dirigir e você não tem nenhum carro" !

-- "O quê ? Que novidade é essa ?! Roubaram meus carros todos" !

-- "Titia vendeu os 3, depois que você atropelou o delegado" !

-- "É verdade, passei por cima daquele traste, não valia nada ! Mas precisavam vender TODOS os carros" ?

-- "Precisou, a família dele processou a nossa, pediu indenização... e o meu carro, vovô" ?!

--"Vou te dar um novinho em folha, vou falar com meu advogado pra refazer o testamento. Agora, vá buscar meu café antes que EU MORRA... de fome" !

92 ANOS... ainda estava em forma (seu pai partiu com 97 e bem !) mas o tratavam como um inválido, um inútil completo. Levantou com alguma dificuldade, a coluna "reclamava" das 12 ou 15 horas sentado na cama. Foi para a janela, apreciando o belo jardim da enorme mansão de vários quartos. Reunira a família inteira ali, duas filhas que pareciam coelhas e lhe deram 3 netos e netas cada, alegria perene do avô "babão". Alice voltava com a bandeja de café completo, ao seu gosto e com uma "novidade":

-- "Tem uma moça do Jornal querendo falar com o senhor... diz que é importante" !

-- "Huumm, SENHOR, é ?! Então é importante mesmo" !

Arrumou-se bem disposto, tomaria banho depois, os jornais fizeram sua fama e fortuna Brasil a fora, era de bom tom não deixá-la esperando.

-- "Escritor Fortunatto, é uma honra poder entrevistá-lo. Meu Jornal quer 1 página inteira consigo" !

-- "Querida, ESCREVER é para quem não tem o que fazer... quem constrói o Mundo é o agricultor, o padeiro, o comerciante" !

-- "Não desdenhe sua função, o senhor fez bela fortuna com ela... não concorda" ?!

-- "Sim, mas graças a vocês da Imprensa. E só tenho esta "casinha" !

A jovem não conteve a gargalhada... "CA-SI-NHA"!, repetiu, irônica.

-- "Vou começar com uma pergunta estranha, aliás, incômoda... conheço todos os seus contos e vosso advogado me declarou que o senhor já fez seu testamento. Então, ao contrário de seus livros, "a Vida não imita a Arte"! Neles, seus "testamentos" costumam estar ocultos em mesas de fundo falso, em telas, em portas ocas, até em mapas secretos. Porque não fez o mesmo ao tratar dos seus bens" ?

-- "Quem disse que não fiz" ?!

-- "Como assim ?! E o testamento com o advogado ? É uma farsa, um embuste" ?!

-- "De modo algum ! Ele se refere ao que todo mundo vê e sabe. Eu diria (em OFF) "que há muito mais" !!!

-- "E como vão encontrar tal "tesouro" ? Com um mapa" ?!

-- "Não será preciso... está À VISTA DE TODOS ! Como ninguém me lê na família -- nem as 2 filhas -- diria eu que a senhorita está mais perto de achá-lo ! Resta saber o que fará com ele" !

-- "Bem, "à vista de todos" há um Mundo inteiro ou, melhor, a cidade toda... o senhor pode ser mais "específico" ?!

-- Nem em sonhos, corro o risco de a jovem chegar a ele antes de qualquer outro" !

-- "O senhor não é tão ingênuo... se são ações ou certificados bancários estarão em nome das filhas e netos. Conta outra" !

-- Muito bem... e o que você fará quando encontrá-lo" ?!

-- "Sou jornalista... farei outra página inteira, que irá RODAR O MUNDO. Seria a minha glória na profissão" !

-- "Pois bem, você VENCEU... meu tesouro vejo a cada manhã, todas as manhãs e todas as noites também ! É O AMOR de minha vida, o que me mantém vivo. PRONTO... agora use sua inteligência, que não é pouca" !

A reportagem saiu num jornal da capital, o escritor contava sua vida desde jovem, toda a tenaz luta para VENDER a si mesmo enquanto escritor, quando ainda ninguém acreditava nele. A repórter eliminou o trecho sobre o suposto tesouro, não era doida de pôr meia cidade no portão do velho. Belo domingo aquele, o escritor dormiu sobre a página histórica e acordou mais duro que "puxa-puxa", aquele pirulito de açúcar queimado, dos tempos do bisavós.

-- "MORTINHO DA SILVA" !, diria o povaréu... chamaram o médico da família e a jovem jornalista, "culpada" pelo passamento do idoso. Desculpou-se... "com 92 anos, qualquer hora era boa para "subir", mas pela cara ele partiu feliz" !

Realmente, Fortunatto sorria... olhava a parede em frente, quadro imenso da esposa adorada, que se fôra uns 15 anos antes. A jovem sentiu-se mal e desmaiou... acordou com tapinhas e água fria no rosto. "O AMOR DE SUA VIDA...", relembrou ela as palavras do escritor. "Eu o vejo todas as manhãs, TODAS mesmo"! Após o enterro, 3 ou 4 dias, abriu-se o testamento na casa em luto, todos tristes, herança de miudezas... a jornalista revelou que HAVIA UM TESOURO na casa, provavelmente no quarto do falecido, mas era necessário destruir o quadro da esposa.

Ninguém permitiu... o advogado interveio, o escritor era esperto, tal coisa seria possível. Com as netas chorando, desmontaram a peça colossal. SURPRESA GERAL: dollars e euros, CDBs, RDBs, ações de várias empresas, contas-correntes em paraísos fiscais... uma fortuna, daria para comprar belo carro para cada membro do clã e ainda sobrava "grana". Alice teve de volta o tal "Fusquinha amarelo", porém o dono atual "triplicou" o preço pago por ele meses antes. Lá no Céu o escritor sorria... definitivamente, "A VIDA IMITA A ARTE" !

"NATO" AZEVEDO (em 5/agosto 2023, 15hs)

OBS: eu que sempre critiquei Machado de Assis por sua "repetição" de temas, me vejo "replicando" antigo conto meu... e nem foi para melhorá-lo, argumento usado pelo defensores do "Bruxo". No meu caso foi "último recurso", por falta de inspiração.