O MEU ENCONTRO COM O LENDÁRIO “CAÇADOR DE RECOMPENSA”.
O MEU ENCONTRO COM O LENDÁRIO “CAÇADOR DE RECOMPENSA”.
- Vulgo “Calcanhar de Cotia”.
Autor: Moyses Laredo.
Num dos fins-de-semana tranquilo em minha Chácara, já no clarão da madrugada, embalando a minha rede, a bom ouvir os sons da passarada, beirando o raiar do dia, quando de inesperado o cachorro dá o primeiro sinal de estranhos na área, levanta a cabeça e olha para o terreiro ainda escuro, depois, se põe de pé. Em seguida surgi alguém a bater palmas, já cá dentro da Chácara, entrou pelas folgas dos arames da cerca dos fundos, não era nenhum conhecido, até ai tudo bem, ninguém se espantou porque não há essa prevenção, os vizinhos entram quando precisam de alguma coisa ou, querem prosear, tomar café ou saber das novidades, não precisam de permissão, também não tem horário, das quatro e meia em diante já é dia.
Mas o homem ali parado era um completo desconhecido. Apenas por despertar a curiosidade, imaginando, sabe-se lá de onde estava vindo, e o que buscava, pedi ao caseiro para ir ter com ele, porém uma coisa é certa, pensei cá comigo, ladrão é que não era, eles não costuma bater palmas e nem esperam os donos da casa pacientemente. O caseiro se adiantou e lá foi, quando me aproximei dos dois, observei um homem alto, bem magro, quase esquelético, que usava um chapéu preto tipo de massa, com as abas laterais curvadas encostadas na copa. O homem se parecia mais com um metaleiro, devido as pulseiras de aço que levava nos braços. Vestia um casaco de couro preto, cheio de tachinhas, calça bem justa, calçava botas de salto, bico fino com biqueira de aço e couro de cobra tipo vaqueiro. No pescoço, trazia umas correntes de aço que espelhavam de longe.
Era uma pessoa diferente, não restava dúvidas, principalmente porque em nada se parecia com o pessoal local. Ao me aproximar, cumprimentei-o cortesmente, o que me retribuiu com um largo sorriso, apertou minha mão com força, o que me fez sentir cada calo da sua, parecia estar apertando a mão de alguém com luvas de couro. Debaixo do fino bigodinho bem aparado, que seguia o contorno do lábio superior, havia a boca entremeada de dentes forrados de ouro. Com esse portfólio, fez aumentar ainda mais a minha curiosidade pelo tipo. Se apresentou como Pereirinha, mas disse ser muito conhecido como “calcanhar-de-cotia”, como completou. Continuou com a apresentação, dizia que .... andava por ali e nas quebradas, bocas e seus “mocós”, até achar quem procurava, ou em tocaiadas, até invadia na bala os cafofos, e, os “cabras” se ousassem “caíam” ... Vixe! Quase não entendi nada, mas suspeitei que o homem andava à procura de alguém... então, eu estava diante talvez de um caçador de recompensas ou um matador de bandidos?... Homem perigoso?... dei uma vista nele e não vi nenhuma arma, mas nem parecia, sua imagem franzina não correspondia a essa função para tanta valentia, pensei nuns caras parrudos, ele não, mais se assemelhava com um fã de banda de roque pesado. Em cada dedo um anel de aço, até se vestia como tal. Continuou contando suas façanhas, quando eu o interrompi para oferecer-lhe um cafezinho, torrado e moído aqui mesmo. Precisava saber mais sobre ele. Aceitou na hora, disse que havia passado a noite escorado numa moita acolá em cima, dentro da invasão. Pensei, invasão aqui perto?..., mas que nada, a tal da invasão estava acontecendo a uns 80 km dali. caráio! ... o ômi andou muito esta noite. Pensando e agindo, o conduzi para a escadinha da varanda aberta do outro lado; pensei, sabe lá o que esse homem quer. O caseiro ainda estava com a chumbeira na mão, ao meu sinal, se enfurnou pra dentro da casa, cutucou a mulher e foi apanhar os ovos para preparar o café, com farofa de ovos fritos, macaxeira cozida e tapioca.
O homem se acomodou no banco corrido, defronte a mim na grande mesa de um só tronco da varanda, de modo que eu podia observá-lo melhor, cara a cara, vi que apresentava uma têmpera de gente bruta de sangue quente, sua barba rala e cara esburacada pela bexiga, mostrava que sua vida era uma constante perseguição, na conversa, nunca deixava de falar o que lhe vinha à cabeça, e sempre se colocando como policial em favor do bem, dizia nunca ter feito acordo com bandidos fugitivos, endinheirado ou não, mas, às vezes teve que agir com extrema violência,... continuou seu relato, se o bandido quisesse vir de “apés” (pelos próprios pés), tudo bem, nem precisava amarrar ele, mas, se entesasse, ele dava sumiço no “pessoa” e enterrava por lá mesmo, marcava o lugar da sepultura, trazia seus pertences e entregava pro delegado, tudo muito simples, na concepção dele. Confesso que eu não estava me sentindo bem com o rumo daquela conversa, temia que tivesse algum “servicinho” contra mim. Não sei porque me ocorreu isso, a essa altura, tudo é válido se pensar. Já tinha escutado estórias desse tipo, embora eu não tivesse conhecimento de nenhum inimigo declarado, mas, eles sempre agem desse modo, ganham a confiança das pessoas, depois executam seus planos. Mesmo assim, tinha que levar a conversa adiante, não podia dar “bandeira”, termo dele próprio, precisava demonstrar confiança para esticar mais a conversa. Continuou sua prosa, contou que foi buscar um sujeito lá em Campoverde, um vilarejo próximo de Pucallpa, já dentro do Peru, quando apareceu por lá, o sujeito se borrou todo, deu um trabalho medonho pra trazer o cabra, ô sujeitinho frouxo, veio montado na sua própria motinha pela estrada 18-C (denominação peruana) barrenta e empoeirada, contou que ele ainda tentou fugir duas vezes, pendendo o corpo e jogando a moto no barranco, em todas as vezes ele conseguia contrabalancear da garupa e aprumava novamente a motoquinha na pista, mas na terceira vez teve que deixa-lo por lá mesmo, só que enterrado, antes, decepou uma das orelhas, a mais enfeitada de brincos, secou no barro fino, jogou no bolso da jaqueta, montou na moto e veio embora até Pucallpa, depois pegou carona num avião de garimpo para Cruzeiro do Sul no Acre, em seguida, pegou outra carona num caminhão boiadeiro até Rio Branco. Disse que só de viagem foi quase um mês. Só trouxe dele a orelha do brinco, pra confirmar pela fotografia na parede da sala do delegado. Contou que com isso, ajudou a promover a carreira de vários delegados, catando bandidos e fazendo prisões de fugitivos famosos da justiça, que se homiziavam na mata (daí o seu apelido - calcanhar de cotia). É conhecido de quem caça, que a cotia na mata é arisca e ligeira, corre muito a qualquer ruído, só se consegue abatê-la quando para quieta para se alimentar. Fiz a imagem dele na hora, correndo atrás de bandidos na mata. Na conversa, perguntei-lhe como ele vivia se não tinha emprego oficial? – “Ah seu moço, o delegado arrumavam com quem pedia o “sirviço”, tirava o dele e ficava tudo bem, o jogo tem que ser limpo!” E para enfrentar tudo isso, o que o senhor levava?...tenho certeza que de mãos limpas é que não é! – “Nada disso patrão, eu tenho duas pistolas 9 mm, dois bulldogs 38 que uso nas botas e uma Winchester calibre 44, que deixei encostada lá no mato, não queria assustar ninguém, mas as pistolas 9 mm e os bulldogs, estão aqui comigo, dessas eu nunca me separo”. Fez aumentar a minha apreensão, – “Pois bem, me diga como o senhor gosta de ser chamado, não quero me atravessar e passar por desrespeitoso”. Ele abriu um sorriso mostrando quase todos os dentes de ouro e até os queixais esburacados de trás, senti seu hálito forte como um bafo de onça, puro odor de sangue, disse que podia chamá-lo de Pereirinha mesmo, o apelido, ficava para os bandidos que perseguia. A bandeja do café chegou, farta como sempre, o homem se abufelou primeiro no bule de café, encheu sua caneca de esmalte até a boca, depois, se atracou ferozmente na farofa de ovo frito com fartas colheradas, a tapioca ao lado, mordia de vez em quando, mantinha sempre o braço esquerdo em volta do prato, como se tivesse medo de roubarem sua comida, típico de quem já foi presidiário. Comeu quase toda tapioca, antes de terminar a farofa, precisou de mais duas dentadas e a tapioca sumiu da sua mão, e olhe, que as bichinhas não eram das pequenas, antes disso, levantei a vista para o caseiro e com um leve balançar de cabeça pro rumo da porta, dei sinal para buscar mais, ainda gesticulei para trazer uma maior, ele entendeu, correu para cozinha, enquanto isso, o homem voltou sua fúria para a macaxeira cozida, ainda quentinha esfumaçando, jogou o vidro de manteiga de garrafa sobre os paus de macaxeira e continuou a mastigar sem parar. O caseiro retornou, trouxe uma tapioca bem maior. O sujeito emendava assuntos enquanto comia, e detonou mais essa tapioca também, quase na mesma velocidade, acho que não sentia o paladar, escorregava tudo goela abaixo, como fazem as garças nos igapós engolindo os peixes direto, parecia que no lugar do estômago, tinha um tubo. Continuou falando sobre suas caçadas humana, quando o interrompi para perguntar-lhe, algo que me inquietava, desde quando o vi. Nisso, o dia já clareava o terreiro, mas tinha que saber o que de fato fazia ali na minha Chácara, tomei impulso e numa pausa do seu fôlego perguntei. - “Mais seu Pereirinha, me diga uma coisa”, - juro que o meu pensamento nessa hora, também passou pelo meu caseiro, – “Quem é mesmo que o senhor está a procura por essas bandas?” ele levantou a vista, tocou no meu braço e disse, - “O senhor não conhece, e eu não posso lhe dizer para não dar “bandeira”, se o senhor souber eu vou ter que lhe matar também, é melhor deixar quieto”. Caramba, foi aquele susto, mas ao mesmo tempo me aliviou bastante, já sabia que não era nenhum de nós, então, insisti, para continuássemos a prosa, ele e nem eu, havíamos ainda terminado nossos cafés, - “Mas o senhor não tem receio de andar nessa mata à noite?” Me respondeu com a boca cheia espirrando em mim a cada sílaba soprada, a silaba “foi” era a que mais espanava a mesa. “Durante anos “trabalhando” pelas matas, nunca abandonei a mania de ficar sempre atento, é dormir com um olho aberto e o outro fechado, acordava com tudo o que se mexia à minha volta”. Eu estava gostando da conversa desse homem rude, às vezes, é melhor ser conhecido por eles do que desconhecido, dei corda para continuar a contar, um dia quem sabe eu escreveria suas conversas, além do mais, tinha todo o tempo, estava ali de férias, o seu “Calcanhar” continuou, - “As pessoas com a minha “missão” aprendem logo a aguçar seus sentidos”. Realmente imagino os inúmeros perigos que se expos em sua “carreira”. Suponho que ele deva também ser caçado, os bandidos fazem tocaia pra ele, entendem que eliminando o caçador, termina a perseguição, há uma lógica nisso. Adivinhando meus pensamentos, adiantou o que mais lhe metia medo, - “Tocaia meu patrão, porque bandido só age assim!” Continuou...”- Porque na mata, uma planta venenosa que fere a pessoa, ou, uma serpente que rasteja no solo ou nos galhos de uma árvore, uma aranha venenosa que se esconde sob as folhas, escorpiões, ou ainda, um ataque de animais como onça, ou uma silenciosa e faminta sucuri, são as ameaças que se enfrenta quando se pernoita na mata, não levo nada para me proteger, não posso carregar peso além das minhas armas e munições, a caminhada é árdua, nem fogo posso acender para afugentar os animais, se não achar uma árvore para subir e me aninhar, tenho que passar a maior parte da noite acordado, pastoreando ou, dar pequenos cochilos. As piores ameaças, se ocultam na escuridão da floresta. Por isso, quem sai atrás de bandidos, é um tipo sempre alerta”.
Gostei da conversa dele, precisava ouvi mais histórias, mas o ômi estava com pressa, engoliu o resto de café da caneca, deu um arroto que de tão enorme quase apaga a lamparina da mesa, acendeu um porronca, ajeitou o velho chapéu de feltro, bateu as migalhas de tapioca e farofa da calça, agradeceu a prosa e tomou seu rumo, nunca mais o vi, e nem ouvi falar dele. Algum tempo depois, através de um amigo, me contou que ele fora morto numa emboscada, por bandidos bolivianos, já na fronteira. Eles tinham roubado e estuprado um casal de colonos no lado brasileiro, calculo que o “Calcanhar-de-Cotia” estava em seus encalços, com certeza iria buscá-los dentro da Bolívia, “debaixo das saias das suas mães” como dizia! Que pena, esperava ouvir mais algumas histórias, não lamento sua morte, mas sim, as histórias de caçadas de bandidos que deixei de ouvir. O seu destino já estava traçado, cedo ou tarde seria esse. Como diz o velho adágio popular “Quem com ferro fere, com ferro será ferido!”