A invenção do gengibre

A INVENÇÃO DO GENGIBRE

(Protagonismo: Deus humanizado)

Depois de trabalhar a semana inteira, criando tudo que era preciso, Deus resolveu aproveitar o sétimo dia bíblico e foi descansar em sua rede, uma das últimas criações. Só muito tempo depois os homens inventaram a cama box com colchão de molas ensacadas individualmente, achando que era o máximo. Mal sabiam que a rede era divina.

Ao se encaminhar para o repouso, o Mestre descobriu no bolso um pedaço de folha de parreira com anotação de uma coisa que faltava inventar: o gengibre. Coisa à toa, mas necessária, afinal poderia acelerar o metabolismo, queimar gorduras e favorecer o emagrecimento. Profetizou a corrida de Eva para seu consumo estético e que poderia evitar futuros e insistentes pedidos dela para que inventasse coisa do gênero. Achou que podia dispensar sua intervenção direta e resolveu delegar a tarefa, que julgava de pouca complexidade.

Vendo passar um querubim desocupado (era seu dia de folga da guarda do Jardin do Éden), chamou-o:

-Alô, meu rapaz!

O querubim, surpreso, prostou-se submisso, a fazer mesuras e salamaleques, julgando-se indigno de olhar diretamente seu Senhor.

-Pula essa, disse o Mestre. Quero que me faças uma tarefa.

-Ordenai e fá-lo-ei oh Grande e Todo Poderoso.

-Vamos parar com isso e simplificar logo essa conversa. Tá decidido! Desse jeito, não está bom. Assim, cheia de imperativos e recheada de mesóclises, está prolixa e complicada. Mas vamos ao que interessa. Quero que inventes o gengibre.

Deu algumas indicações e sugeriu, quanto à forma, tomar como modelo a batata-doce.

E foi descansar.

O querubim, encantado com todas aquelas últimas criações da semana: o sol, a chuva, a luz, a sombra, o pé-de-banana, o pau-de-sebo, a festa junina, a Patagônia, os anéis de Saturno, não cabia em si de tanto deslumbramento e passou o dia caminhando, esperando a noite chegar (que também era novidade). Com isso, só na manhã seguinte, depois de tomar um café com leite de cabra e pão integral é que foi lembrar do compromisso assumido com o Mestre.

Encaminhou-se para a oficina no quintal de casa e, coçando a cabeça de preocupação, não sabia por onde começar. Ficou pensando: se Deus sabe de tudo, era do seu conhecimento que não tinha lá essas habilidades todas, afinal só passara no teste para querubim depois de repetir o supletivo angelical por duas vezes. Achou que certamente o Mestre queria dar-lhe uma oportunidade e testar suas potencialidades, para formar uma equipe de auxiliares.

Revisando o conteúdo de algumas apostilas do curso para querubim, começou a fazer combinações aleatórias, na base de tentativa e erro, até chegar a um resultado que lhe pareceu satisfatório, apesar do sabor muito amargo e picante. Só não soube o que fazer com o formato esquisito, todo irregular, nada parecido com a prática simetria da batata-doce indicada pelo Chefe. Pensou, tentando se tranquilizar, que, tendo tantas coisas importantes e universais para se preocupar, o Mestre não iria perder tempo com esse detalhe.

Deus, todavia, na infinitude de suas qualidades, era onisciente e nada escapava a seu conhecimento. No intervalo de suas atividades criativas universais, entre elas a formatação do Big Bang, avaliou que o querubim tinha se esforçado muito e que o resultado do seu trabalho poderia ser considerado suficiente e funcional. Deu-se por satisfeito e, por ser também infinitamente bom e justo, apenas deixou o querubim sem promoção naquele ano, como alerta para que estudasse mais.

E assim ficou o gengibre do jeito que é...

(Esse texto não contém qualquer ideia ou intenção de heresia. Deus é testemunha.)

Zedvaldo

Maio/2023

zedvaldo
Enviado por zedvaldo em 27/07/2023
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