A Feijoada Beneficente

Trabalho em uma empresa solidária, que orgulho!

Nossa diretora, Estela, é uma profissional que se diz filantrópica, diz que está preocupada com as minorias. Por isso, anda sempre empenhada em realizar campanhas que buscam arrecadar fundos para as instituições carentes. Rifas, bolões e doações fazem parte da nossa rotina. Nunca deixei de ajudar, mesmo tendo fama de pão-duro.

Minha fama de pão-duro não está relacionada à minha maneira de viver (não sou nenhum bon vivant, mas também não vivo contando moedas), e sim aos valores que doo quando a diretora passa com o chapéu. Entre os funcionários do meu setor, eu sempre ofereço a menor quantia. Às vezes são valores insignificantes, quase um deboche. O fato de eu oferecer tão pouco às doações não significa que sou um sujeito de coração duro. Na verdade, minha descrença não é em relação às campanhas solidárias, e sim em relação à honestidade de Estela, pois tenho suspeitas de que as doações, sob a tutela dela, não chegam integralmente ao seu destino.

Acho que todos se lembram da tragédia de Brumadinho. Pois é. A diretora, através da nossa ajuda, arrecadou milhares de garrafas de água mineral que seriam destinadas às vítimas. Lembro-me que doei um copinho de 200ml. Fui muito criticado na ocasião. Mas antes de um final de semana que aconteceria dias após a campanha, alguns me deram razão. Na sexta-feira, ao bisbilhotar o carro de Estela no estacionamento, vi que no porta-malas havia vários engradados de água, e pertenciam à marca que fora mais predominante durante as arrecadações. Por coincidência, a diretora iria passar aquele fim de semana na praia com toda a sua família. Bebendo de qual água? Sei que isso não prova muita coisa, mas, de fato, abalou a minha fé.

***

Sempre gostei de feijoada. Então acabei concordando em pagar absurdos 150 reais no ingresso da Feijoada Beneficente, a mais nova ação filantrópica de Estela.

Hoje é um lindo domingo de sol. O salão de festa da empresa está cheio. Logo no início, sinto falta da agradável cervejinha, ou mesmo da caipirinha; são bebidas que realmente combinam com o prato. Em vez disso, a única opção é um vinho de péssima qualidade. Estela diz que esse vinho harmoniza muito bem com o cassoulet, e por isso deve harmonizar bem com a feijoada. Ledo engano.

Estela tem quarenta e cinco anos, é uma mulher bastante atraente. Pratica corrida e por isso tem o corpo fitness. Está viúva há três anos, mas vive trocando de namorado. No momento, está namorando com um homem mais novo, de trinta e quatro anos. O cara é ridiculamente elegante, vive de calça social e camisa cor-de-rosa. E, mesmo com o calor que faz hoje, ainda usa um pulôver.

Conversa vai, conversa vem. Um gole de vinho, mais outro gole de vinho…

Finalmente. O almoço está na mesa. Ao me servir, a fúria toma conta de mim. É isso o que eles chamam de feijoada? Feijão preto, carne-seca, costelinha, paio e bacon. Onde está o pé? A orelha? A barriga do porco e, principalmente, o rabo???

— Que merda é essa?! — grito, jogando o prato aos ares.

As pessoas me olham, espantadas. Estela me fita com os olhos apertados. Agora é tarde, já que comecei, tenho que continuar:

— Gastei 150 reais pra beber um vinho de merda e comer essa feijoada de fresco?! De onde eu venho isso é comida de veado! Feijoada tem que ter sustância. Eu gosto de me lambuzar no prato e ficar com a boca impregnada de gordura, de ficar com os lábios colados, que nem eles ficam depois de chupar uma xoxota. O cara que se sacia com essa feijoada nutella deve chupar a mulher só com a pontinha da língua. Não paguei 150 paus pra isso, não! Eu queria comer o rabo, o raaabo!!!

Sinto uma mão me segurando e ouço alguém me pedindo calma. Olho novamente para Estela. Ela esboça um sorriso nervoso com o canto da boca.

— Acho que alguém exagerou no vinho — ela diz. — Mas a nossa confraternização tem que continuar. Bom apetite, pessoal!

Um colega me leva para fora e chama um Uber, não estou em condições de dirigir. Talvez eu tenha mesmo exagerado no vinho.

Na Segunda-feira, sou chamado à direção. Tenho certeza de que Estela vai me demitir, não é para menos.

Entro na sala. Estela, vestindo blazer e saia, está de pé, analisando um gráfico no iPad.

— Sente-se, por favor — diz ela, friamente.

Sento-me. Ela coloca o iPad sobre a mesa e senta-se à minha frente.

Estela me encara por alguns segundos, sem dizer nada. Então solta os cabelos e cruza as pernas. Vejo que ela está sem calcinha.

Renato A
Enviado por Renato A em 27/07/2023
Reeditado em 27/07/2023
Código do texto: T7847383
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