O Leproso

Quem teria a coragem de se aproximar de um homem com lepra? Oseias estava jogado no fundo de uma masmorra; não porque era condenado por crime. Nas condições em que se encontrava preferiria que antes fosse. Crime algum cometera, mas era um execrado pela sociedade que tanto se divertira com ele. Hoje ao vê-lo nas ruas é bem outra a reação. O riso espontâneo do passado, que exprimia a felicidade de vê-lo atuar como bobo da corte e alegrar os amigos do rei é agora a risota de escárnio e rejeição. No entanto ele prefere o isolamento a ter que chocar alguém com a sua terrível aparência. Oseias é o retrato da compaixão, ao mesmo tempo o alvo da discriminação e da falta de amor.

O corpo está coberto pelas feridas da hanseníase que no primeiro milênio da era cristã foi a praga mais temida, o verdadeiro horror generalizado, o mal-de-são-lázaro. Havia, na igreja central da Roma antiga, um setor para acolhimento dos vitimados pela terrível moléstia. Os padres franciscanos, levados pelo profundo amor a esses marginalizados eram os responsáveis pelo controle e tratamento da doença a qual, sem o fervor da sua dedicação teria muito mais se alastrado.

Pelo fato de ter servido a Sua Majestade por longos e prósperos anos, foi permitido a Oseias permanecer no palácio após o diagnóstico da lepra. Afastado das obrigações da corte ele dedicava-se a tarefas menores como cuidar do jardim, dos animais da estrebaria e da manutenção das carruagens. Tudo isto funcionou a contento enquanto os sinais do mal não se tornavam evidentes aos olhos das outras pessoas.

A princípio somente ele e o rei compartilhavam o caso, mas isto se mostrou logo impossível. As mãos de Oseias, como parte do rosto, do pescoço iam denunciando-o impiedosamente; ele foi se isolando até preferir a solidão do calabouço. Entretanto esta opção fê-lo sofrer ainda mais. As poucas vezes em que saía às ruas, para respirar o ar de fora, ver gente, visitar as barracas das frutas que tanto amava, o impacto dos olhares, dos comentários enrustidos, que ele por certo exagerava, deprimia-o sem conta. Foi quando o padre Sávio Romão entrou em sua vida.

- Peço que me desculpe seu santo padre, mas não vou aceitar a sua solicitação. Não sou como os demais doentes que o senhor tem lá na sua igreja. Meu mal não é só no corpo, é muito mais na cabeça. Não consigo aceitar o que sou hoje em comparação com o glamour que marcou toda minha vida passada.

- Não vim aqui para escutar suas lamúrias, mas para encaminhá-lo à igreja; é lá que vai ser o seu tratamento a partir de agora – disse Sávio Romão, num tom de severidade, mas que deixava transparecer o amor e a experiência de vida com os leprosos. Ele já andara se inteirando sobre o passado e o estado mental de Oseias e sabia da dificuldade que iria encontrar.

Após pacientes visitas, conselhos, orientações baseadas nas escrituras que sempre o acompanhavam conseguiu o padre Sávio Romão arrebanhar para a sua casa de orações este homem tão angustiado e solitário. Oseias conheceu ali, durante meses, um lar de amor; tudo de que precisava para conviver, em estado de paz e de aceitação, com esta fase de sua vida. Não recebia visitas, o que tremendamente o amargurava. A compensação desse desprezo vinha nos relacionamentos que cultivou ali dentro. Acostumou-se a uma rotina de vida rígida, mas prazerosa. Acima de tudo, levado pelo hábito que aprendeu a cultivar, descobriu a fé, algo que para ele não queria dizer muita coisa.

Como consequência do estilo de vida que passou a ter, da ausência de rejeição e de um novo modelo social de existência, Oseias ia, aos poucos, recuperando-se de sua enfermidade. Foram tantos os milagres que viu ocorrer em decorrência da aceitação de certos princípios que, após ver-se livre e curado decidiu seguir o caminho religioso. O interesse por vida social intensa ia dando lugar, aos poucos, a um sentimento mais voltado para o bem estar da sociedade em que vivia e que vira atuar em sua mudança de vida.

Foram anos de aprimoramentos, estudos bíblicos e entrega à vida religiosa. O apoio que obteve nos anos de sofrimento com a doença dava-o agora aos outros; apregoando a verdade trouxe muitos doentes para dentro da igreja. Acontece que o acúmulo de leprosos em função do grande sucesso alcançado pelas ações do missionário Oseias trouxe problemas. O maior deles foi a deficiência de recursos para manter a assistência. A falta de espaço era outra grande preocupação.

Se por um lado a ação do bem de salvar vidas e encaminhá-las para um destino melhor era o primeiro objetivo do padre Sávio Romão que estava à frente de tudo, por outro, as missas, os batizados e outras atividades essenciais à manutenção da entidade estavam sendo sacrificados. Via-se a diminuição desses eventos, o que refletia drasticamente na arrecadação de fundos. Oseias vivia feliz os seus dias de missionário e não compartilhava de igual forma as preocupações dos outros padres. Mesmo assim saiu em busca de ajuda e ninguém melhor do que o rei a quem tantos serviços prestara no passado.

- Você sabe que sempre pôde contar com o meu apoio– disse o rei -foram anos de vivência palaciana; conheceu a intimidade da realeza e vejo como uma obrigação ajudá-lo. Mas, me desculpe. Não posso; estou impedido.

- E o que o impede, Majestade?

- Nossa medicina não se encontra ainda capacitada para lidar com a lepra de uma maneira eficaz. Em outras palavras, não encontramos a cura. E isto é ruim para todos; para o reino, inclusive. E vocês têm operado milagres. Tiraram praticamente todos os leprosos das nossas ruas, limparam a sociedade.

- E o que pode haver de mais venturoso do que esse acontecimento? – disse Oseias, procurando entender as palavras do rei.

- Creio não ser difícil para o seu entendimento em razão da pessoa inteligente que é e que aprendi a conhecer.

Oseias já tinha, na verdade, ciência de onde o rei queria chegar. A monarquia do seu tempo, mesmo constituindo a força máxima, não deixava de aceitar ou submeter-se a certos padrões tradicionais vigentes há anos na sociedade. A medicina era um deles. Os leprosos, como muitos acometidos de doenças raras ou de difícil cura constituíam, de certa forma, uma fonte de renda para setores interessados em mantê-los doentes ou sob cuidados médicos. Eram as drogas, as poções medicamentosas, as consultas clínicas, as internações uma fonte de renda contínua e bem recebida. Eliminar esse meio de ganho era contrariar os vários seguimentos beneficiados. Foi o que fez a igreja na pessoa do padre Sávio Romão e ultimamente do missionário Oseias.

- Como deve imaginar, eles me têm impedido de ajudar a igreja. O que não podem e não conseguem é controlar a vontade dos doentes de procurá-los e obter a cura pela devoção religiosa e reconheço que é o que mais tem ocorrido. Por isso louvo o seu trabalho. Mas não me peça para ajudá-lo monetariamente; eu estaria atiçando o pavio de um barril de pólvora e só eu sei o que isto representaria para o meu reino.

Descartado esse tipo de ajuda, o missionário Oseias partiu para a alternativa de contar com o auxílio daqueles que foram agraciados pela fé. Os que já não apresentavam mais sinais da doença e podiam, por isso, exercer atividades normais foram convocados para uma reunião emergencial. Nesse dia aboliram-se as atividades da igreja e, em três sessões, ouviram palestras e explicações e participaram dos treinamentos sobre o que deveriam fazer daquele dia em diante.

Tiveram início as atividades. O trabalho consistia em visitar todas as residências, em cada recanto do reino, com a finalidade de se angariar recursos a fim de que o grande trabalho social da igreja não fosse interrompido. Foi aí que o missionário Oseias conheceu de fato a natureza do ser humano. Abismou-se com a incapacidade, ou antes, com a pobreza de vontade e de iniciativa, valores essenciais a quem deseja uma vida saudável e produtiva.

De todos os que receberam treinamento e incentivo para ajudar a igreja na grandiosa obra de recuperar os oprimidos pela doença e abandonados pela sociedade, apenas uma minoria ínfima, que não chegou a dez por cento tocou realmente o projeto e fez sua parte em retribuição à bênção de cura que haviam alcançado. Os outros, ou quase todos, preferiram retornar à vida de comodidade e dependência a que estavam acostumados. Deram assim oportunidade à sagacidade humana proveniente da sociedade materialista.

Na verdade ela é consequência da própria inação do homem quando se deixa levar pelo mal. Somente então compreendeu Oseias a grande sabedoria do padre Sávio Romão e passou a ser comedido em seus atos de caridade. Sabia o padre, desde o início, que ele era especial; por isso insistira na sua vinda para o tratamento religioso. Deixou que Oseias aprendesse por experiência própria que a salvação existe, mas só a obtém quem a busca verdadeiramente

Professor Edgard Santos
Enviado por Professor Edgard Santos em 27/06/2023
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