Pena de Morte
A página em branco a minha frente neste momento instiga minha vontade e requer que toda minha concentração, toda minha lembrança recaiam sobre ela a fim de que nenhum vestígio do que passei, e quero agora relatar, seja jamais esquecido. Meu nome é Antoine Louis, secretário da academia de medicina da França. Meu espírito encontra-se alienado na dor que representaram aquelas horas inesquecíveis. Posso não sobreviver às brechas da minha carne, aos lamentos da alma aflita e desesperada, mas enquanto um mínimo de força e atitude ainda brotarem da mão que conduz a pena não vou desistir de deixar registrados os lances que redundaram em perdas e desenganos. Longe de tentar provar a quem agora me lê algo que saberei impossível; sequer tentarei essa artimanha.
Não busco reconhecimento; de forma alguma pedirei que me apoiem ou que sequer concordem com o meu ponto de vista. A análise não dispensa crítica tampouco transige com as opiniões do autor. Entretanto, imbuído de curiosidade a princípio, seguida de inspeção minuciosa no intuito de descobrir a verdade, terá o leitor a chance de avaliar a minha retidão; ou, para minha sorte, não desejar o meu fim. Dar-me-ei por feliz se apenas isto me sobrevier.
A dor que me assola a mão direita tem se tornado insuportável nos últimos dias. Contrariando conselhos de não me esforçar em demasia, movo-a frenética e incessantemente, pois quero escrever, preciso escrever; única forma de deixar provada a minha inocência. Não me importam as tiras de pano que me envolvem o pulso protegendo contra o atrito da pele as beiradas do pergaminho. As chagas não me permitem o apoio ideal e nisso tardo a cicatrização do meu mal. Menos mal, porém, a ter que adiar a minha decisão implacável. Ainda tenho este quarto, espremido e mal cheiroso.
Amigos, não mais os tenho. Já há muito não confio na lei, pois foi ela, desvirtuada, conspurcada e feita nula pelos manipuladores, que me trouxeram até esse lugar e, não fosse a mão do destino eu já não existiria para contar essa história. Corro contra o tempo. Não acredito que a monarquia vigente aceitará as minhas explicações. Para eles não passo agora de um velho esquálido a esperar que os mensageiros da morte penetrem neste ambiente e cumpram o seu papel. A maior parte já se encontra acabada. Poucos dias, não mais do que alguns dias antes do ponto final. Entrando por esta porta Teodor Maxwell, na data que combinamos, terá em suas mãos esses originais. Então a morte acolherei; só peço a ela que me não venha antes disso.
Quero mostrar ao mundo a minha inocência. No reinado de Luis xvi eu era um dos homens de confiança de sua corte. Ele deixou sob minha responsabilidade uma região infestada de assassinos sanguinários acostumados a não respeitar a lei. Meus tormentos começaram quando fiz valer, como lei, a pena de morte. A guilhotina acabara de ser por mim inventada. Por incrível que pareça ela passou a constituir o meio menos cruel de execução no período da Revolução Francesa se comparado com o que havia na época.
Era macabro assistir uma cabeça pular para dentro do cesto e o espicho de sangue colorir o eirado de morte à frente de olhares os mais diversos; de náuseas a estertores de alegria e vingança. Por causa desta minha invenção amarguei ódio e ressentimentos. O que castiga no momento a minha alma é ter perdido a graça de continuar minha pena nos jardins do castelo em que aconteceu minha condenação. Ali, embora reticente, sem o contato com a sociedade poderia dizer que era feliz, tudo por conta dos meus incontáveis passatempos. Tinha na música, na literatura, no contato com a natureza e nas visitas esparsas o meu quinhão de alegria e de esquecimento.
Os anos que passei procurando encontrar substituto para aquelas formas de morte cruéis e ineficientes, todo meu sacrifício e determinação foram finalmente recompensados. Chegou o dia da apresentação. Quando, no patíbulo, na enorme área atrás do palácio reservada às execuções, demonstrei a eficácia da guilhotina fui alvo das mais duras críticas e, por que não dizer, do mais causticante ódio. O pátio estava lotado. O rei mandara distribuir convites às mais ilustres personalidades, representadas por todas as hierarquias, entre as quais, parentes e amigos íntimos seus. Eu não compreendia como pessoas tão influentes e nobres não conseguiam compreender um princípio tão simples. Colocaram o sentimento à frente da inteligência e da razão ao não imaginarem nada além de um pescoço decepado por uma lâmina. Por mais que eu procurasse explicar não me deram ouvidos.
Chega a ser óbvio entender que uma forca pode falhar na hora exata e deixar o condenado entre a vida e a morte ao romper-se uma corda no meio ou no alto, deixando o pescoço ainda sob o forte laço. Um fuzilamento não garante cem por cento que a morte seja imediata, o que não justifica uma bala contra a cabeça do moribundo. A fogueira é a mais cruel das penas de morte por submeter o arrastado aos mais terríveis sofrimentos. As justificativas de que essas pessoas cometeram crimes, alguns tão ou mais cruéis do que sua própria pena não é convincente, uma vez que vivemos no meio de uma sociedade civilizada e há um julgamento com testemunhas, juízes e advogados e toda união de fatos e motivos que levaram um réu a cometer assassinato. Além disto, há a extrema unção, o encaminhamento da alma ao seu merecido destino. O que são esses procedimentos se não rudimentos de uma sociedade que quer se organizar? Seria então judicioso que se abolissem tais meios para o bem da preservação de uma pena de talião.
Estávamos reunidos para uma demostração na Place de Gréve, em Paris. Olhavam-me com desdém; homens poderosos em suas vestimentas invejadas, empoados de orgulho e soberba. As perucas brancas, a pele pálida, resultada de uma rotina palaciana em que imperava a intelectualidade doentia, a sede do ouro e do poder. As mulheres, belas e elegantes, acompanhavam-nos com seu sorriso meigo e feminino; menos convencidas da utilidade mórbida da minha invenção do que forçadas, pela tradição do protocolo Real, a acompanhar seus homens a eventos desse gênero. A cada vez que eu acionava a alavanca e a lâmina se soltava, gritinhos de emoção contida, principalmente vindos das mulheres, exclamações e risos nervosos exalavam sobre o ambiente, deixando todos muito desconfortáveis. O rei estava ao meu lado; ele próprio me auxiliava a amparar o boneco que servia de cobaia da experiência.
- Que acham senhores? – eu dizia – estamos diante da invenção do século. Não creio que tenha havido, desde a antiguidade, uma forma tão rápida e indolor de executar um condenado a morte.
-Indolor! O senhor disse indolor? ¬– foi a reação de um dos súditos convidados.
-Está claro, meu senhor – eu respondi. – O condenado sequer sente o baque. O peso descomunal imposto à lâmina trá-la em direção ao pescoço da vítima em fração de segundo após o acionamento da alavanca. O que pode existir de mais prático? Veja. – Dizendo isto, soltei o dispositivo e, mais uma vez, a cabeça arredondada e careca do boneco saltou para dentro do cesto arrancando dos presentes novos suspiros de emoção. Ainda bem que eu não fizera o que havia planejado, ou seja, colocar algo parecido com sangue no interior da cabeça; imagino como não iriam se sentir os idiotas. O rei ficou furioso com o movimento inesperado que fizera ao descer a lâmina sem precavê-lo; sua mão estava bem próxima e, por pouco não a decepo, também.
- Desastrado imbecil! – disse aos gritos, enquanto puxava para si a mão tremente. – Viu o que fez? Devia ser o primeiro a morrer nesta geringonça pelo ato impensado que acaba de cometer.
- Mil perdões, Sua Majestade! Perdoe minha negligência.
Saí dali furioso e corroído pela vergonha. Havia sido um fracasso minha experiência. Contudo, mantive a esperança de vê-la aprovada pelo rei. O que não aconteceu. Ficou em mim a dúvida se uma razão pessoal tivera sido a responsável por sua decisão. Passei adoentado nos dias que se seguiram. Os movimentos repetitivos na elaboração da minha invenção causou-me uma infecção nas mãos e no braço e sofri com dores atrozes e tive que ficar em repouso. Consegui fazer chegar a Itália um mensageiro que encaminhou ao rei um esboço do meu projeto e uma autorização para uma cópia para apresentação lá. A aprovação não tardou e eu exultei de alegria. Mas a surpresa maior ainda estava por vir. Fui chamado ao palácio e recebi a notícia sem acreditar no que estava ouvindo.
- O senhor está preso e irá a julgamento – disse-me o rei de França.
- Não estou entendendo.
- Não se faça de tolo! Não admito traição de espécie alguma. O fato de não aprovar o seu projeto não quer dizer que o capacita a divulgá-lo a outro Domínio, especialmente ao rei de Itália, meu inimigo.
Não quis argumentar. Esperei o tempo certo enquanto aguardava no palácio o meu julgamento. Passei cada dia tramando minha vingança. Consegui estar a sós com o rei para uma conversa. Aproveitei o momento certo para envenená-lo, colocando a poção, sem que disso se apercebesse, em sua caneca de vinho. Retornei dali para os meus aposentos e aguardei, fingindo espanto e surpresa, a notícia de sua morte. Recolheram-me, dias mais tarde, a este quarto lúgubre e solitário em que deixo entregue ao destino, à compreensão e alma do próximo soberano e, acima de tudo, aos que lerão esta obra, o meu julgamento. Narro aqui, detalhadamente, tudo que envolveu o surgimento e recepção desta ferramenta macabra, mas necessária na era atrasada em que vivo os meus últimos dias.