Cachorro Siberiano
Sentia preguiça. Estava frio. E tudo conspirava contra min. Aquela mesinha da sala não estava no lugar como eu queria, a louça da cozinha exposta ao sol deixava manchas nos pratos e talhares que continha “made in china” como marca. Para completar, havia perdido a assinatura da TV a cabo, minha internet banda larga estragou e a privada encontrava-se entupida. Era realmente um dia perfeito. Ou seja, um dia como todos os outros. Olhava pela janela e via meu carro com o pneu furado e o cachorro, coitado, fedia a estrume de vaca. Tinha que comprar pão, já era quase sete horas da noite, abri a carteira e só via moedas de um centavo, quanta insignificância. Saí a pé levando em consideração que alguém me desse carona até a padaria mais próxima. Caminhei durante minutos, horas, finalmente cheguei à padaria: Fechada. Era muita sorte. Olhei para o relógio e ponteiro já marcava dez da noite. O que ia fazer? Já era tarde, estava faminto e cansado. Achei um canivete abandonado no meio fio da calçada. O peguei e o segurei entre meu polegar e indicador, fitei perante alguns segundos pensando no beneficio que aquele objeto poderia me trazer. Pensei. Pensei. Pensei. Não havia nada conclusivo, a única resposta plausível seria concertar a sola do meu tênis All Star que estava veementemente rasgado. Naquele exato instante passava uma BMW série 5, preta, vidros fumês. Eu fitava a BMW e o canivete alternadamente; levantei-me e fui para o meio da rua fazer sinal pro carro parar. E ele parou. O vidro foi descendo e aos poucos fui enxergando um rosto com traços exclusivamente femininos. Até que o vidro desceu por completo e vi uma loira com lábios carnudos, rosto macio semelhante a de uma boneca de porcelana, ela usava roupas justas, tinha estilo e um charme irresistível.
- Aceita uma carona? – Perguntou ela com um olhar de carinho, de afeto, de preocupação.
- Claro. – Dissera eu, um pouco assustado com tal atitude da moça. Ela aparentava ter no máximo dos máximos 25 anos, na flor da idade, bem sucedida, devia ser inteligente, tinha cara de quem falava o português correto.
- Abre o porta-luvas. – Disse ela, num tom rígido.
Abri. Vi um revolver calibre 38, estava carregado. Fiquei alarmado.
- Pegue a arma e aponte para min.
- O quê? Só pode estar brincando, porque eu faria isso?
- Você não pode negar um pedido de uma mulher, pode?
Ela fez uma cara de quem estava solitária e carente, só pediu para eu levantar a arma à altura de sua cabeça, o que tinha de mal nisso? Não tenho a intenção de matá-la, nunca matei ninguém. Até porque matá-la seria um verdadeiro desperdício. Que loira! Peguei a arma tremendo e a apontei.
- Como é seu nome? – Perguntou ela.
- Mário Jorge.
- O que você faz da vida, Mário?
- Eu era Jornalista.
- Era?
- Fui demitido.
- Há quanto tempo?
- Já faz seis meses.
- De qualquer forma você não deixa de ser um jornalista só porque foi demitido.
- Como?
- Você ainda é um jornalista.
Falei que ela tinha cara de quem falava o português correto. Todo esse papo fluía com a arma apontada para sua cabeça.
- Pois bem, Mário Jorge, hoje é seu dia de sorte, sou uma executiva de uma grande emissora de televisão européia. Tu manjas inglês?
- Sim, fiz intercambio no Canadá durante dois anos.
- Qual é sua especialização, Mário?
- Trabalhava com telejornalismo.
- Hum, interessante, vamos fazer um teste de vídeo, se tu se saíres bem, estará contratado.
- Posso abaixar a arma agora?
- Ainda não.
- Por que isso?
- Preciso da tua ajuda, vamos realizar um assalto.
- O que? Por mil ampulhietas! Estás louca? Eu não vou assaltar nada!
- Tu queres um emprego ou não quer?
Naquele momento comecei a pensar no meu carro estragado, meu cachorro abandonado, minha casa caindo aos pedaços, estava sem dinheiro e com fome. Aceitei.
- Tudo bem, o que eu devo fazer?
- Beije-me!
- Como?
Ela grudou-me um beijo saboreante, senti seus ardumes palpitando meu corpo, fiquei excitado, em todos os sentidos.
- Por que tu me beijaste?
- Tu és um cara atraente.
- Sério?
- Sério.
Gostava de mulheres de iniciativa. A arma, no entanto, continuava apontada. Meu braço já estava cansando.
- É aqui! Chegamos. Atire em min.
- O que?
- Atire em min!
- Eu não vou atirar em ti!
- Atire em min e verás se de fato morrerei.
Não sei o que aconteceu comigo, por impulso, atirei nela. Entrei em desespero. Ela caiu no chão sangrando, a porta do carro abriu-se com o impacto, e lá estava ela sangrando por todos os lados. Uma mulher linda daquelas não poderia jamais morrer. Comecei a chorar, e abruptamente ela se levanta:
- Deu certo! Ajuda-me a levantar.
- Mas como? Tu não morreste? Tu não morreste! Caramba!
- É claro que não!
- Devo estar tendo um pesadelo! E esse sangue?
- É artificial.
Ela levantou a blusa e mostrou-me seu colete a prova de balas com sangue artificial emplastificado. Igual aqueles usados nos filmes de Quentin Tarantino. Sempre fui fã de Quantin Tarantino.
- Sou fã do Quentin Tarantino, gostou da minha desenvoltura? – perguntou ela.
- Tu quase me mataste de susto! Espera aí, tu disseste que é fã de Quentin Tarantino?
- Disse.
Será que havia encontrado a mulher de minha vida? Não conheci uma única mulher que gostasse de Quentin tarantino.
- Chega de Papo. O cachorro está no banco de trás?
Olhei para o banco traseiro e de fato vi um cachorro siberiano, dormindo, devia estar dopado.
- Espera aí, como esse cachorro veio parar aqui?
- Enquanto tu choravas pela minha falsa morte, um homem colocou o cão no carro sem tu perceber. Havia combinado isso.
- Mas por quê? Com que finalidade? Simular uma morte para seqüestrar um cachorro? Tu não bates muito bem, não!
- Isso é uma longa história, vamos embora.
Ela dirigia muito rápido, fomos para um motel.
- Você vai fazer amor comigo – Disse ela.
Fiquei mudo, e com medo. Botei a mão no bolso à procura do meu canivete, mas não encontrei.
- Ei, onde está meu canivete?
- Está comigo. Por precaução.
Ela se aproveitou daquele beijo para roubar-me o canivete.
- Responda-me sinceramente, porque me deu carona? Nem me conheces!
- Tu não és casado.
- Como sabe?
- Pelo teu beijo, percebi que não é casado.
- Mas o que isso tem haver?
- Tudo bem, Mário, você quer uma explicação plausível? Então lhe darei! É o seguinte, Mário, não sou feliz com meu marido. Estava solitariamente dirigindo pela rua quando o vi sentado com um canivete na mão, logo pensei que vós pudésseis me estuprar e me matar, seria algo perfeito. Preferiria morrer depois de sentir algum prazer, do que viver com aquele trouxa que não consegue me fazer feliz na cama! Entende Mário Jorge? Ele não me satisfaz!
Olhava-a atentamente, com os olhos esbugalhados. Ela continuava:
- E sabe do que mais? Tu pelo contrário, não me fez nada! Parecia estar com medo de minha atitude, mas por sorte nessa mesma noite teria que buscar um presente que eu mesmo me dei, um cachorro siberiano! Sempre gostei de um Cachorro siberiano! Por que diabos não posso ter um cachorro siberiano? Já que não sou feliz na cama, posso ao menos ter algo que eu sempre desejei.
- Eu também sempre gostei de cachorro siberiano. - Disse eu, sem muito rumor.
- Pois bem, havia combinado com um pilantra lá da vila, ele me conseguiria um cachorro siberiano em um preço bom e a raça pura, sabe que não existe cachorro siberiano no Brasil, não é?
- Sim é claro. Mas por que a simulação?
- ah, aquilo, de fato não foi planejado. Antes de encomendar o pedido havia dito ao tal pilantra que viva ou morta eu queria o cachorro siberiano. Ele disse-me que se eu estivesse morta ele dar-me-ia de presente. Sairia mais barato eu forjar minha morte, tu não achas?
- Tu és louca!
- Sou mesmo, fato é que o pilantra ficou com medo de ti, e fugiu, deixando apenas o cachorro siberiano no banco de trás.
- Ele (cachorro) vai dormir por quanto tempo? – Eu perguntei. Já me habitualizando com a situação.
- Acho que por umas doze horas, ele está dopado.
Houve um silêncio abrupto depois desse diálogo. Até que ela retoma a conversa.
- Tu me desejas?
- Como?
- Tu sentes atração por min?
Fiquei com receio de responder, afinal, não sabia com que tipo de mulher estava lidando. Mas fui sincero.
- Sim, tu és uma mulher deslumbrante, só me assustou um pouco.
- Um pouco?
- Tudo bem, bastante. Mas uma coisa tu não me explicou, por que me disse que seria um assalto?
- Pra te deixar mais vulnerável.
- Como assim?
- Disse que seria um assalto pra ti justamente ficar com medo e nervoso, as pessoas quando estão nervosas fazem coisas sem pensar e por muitas vezes, só no impulso. Foi por isso que tu atiraste em min. Não foi porque tu quiseste, mas foi porque estava nervoso e realizou o primeiro ato que veio a sua cabeça.
- Nossa, nunca parei para pensar nisso.
- Chegamos ao motel. – Disse ela.
Estacionamos, fomos à recepção, pegamos a chave do quarto, tudo isso sem uma palavra, no mais puro silêncio. Entramos no quarto, ela disse que ia tomar um banho antes, respeitei sua vontade e deitei-me nu na cama redonda e com um espelho no teto. Aguardei ansiosamente, no fundo, não sabia porque estava fazendo aquilo, era como se eu estivesse no meu inconsciente realizando atos não subtendidos. Ela chegou nua na beira da cama e disse:
- Está pronto, Mário?
- Prontíssimo!
- Então me faça feliz!
Fizemos amor intenso, gozamos no ar da alacridade alheia, nunca uma mulher havia-me saciado sexualmente por completo, ela tinha classe, ela me fez feliz. Depois de algumas horas, já tapados por um lençol fino e molhado de suor, voltamos a dialogar em um estágio bem mais íntimo:
- Nossa, Mário, tu é o amor da minha vida.
- Eu digo o mesmo.
- Chamo-me Flávia. Desculpe por não ter me apresentado antes.
- Tudo bem. Valeu a pena esperar.
- Quero que tu se cases comigo, vamos juntos para Europa, deixarei meu marido.
Eu e ela nesse ponto já estavamos fumando um cigarro na cama, e apenas pensei:
Estava bem, com emprego garantido na Europa, uma mulher que me amava e me satisfazia. E o melhor, eu também a satisfazia. Tudo isso por causa de um simples cachorro siberiano. Displicências da vida. Mas havia dúvidas pendentes. Por que ela, de fato, furtou-me o canivete?