O Casamento
Não consegui sair dos meus aposentos por horas seguidas. Não que a vontade me impedisse, mas o tempo. A chuva era torrencial e já caía há duas horas. Eu já estava impaciente, mas não havia outro jeito a não ser esperar pela vontade da natureza. Isto me pegou mesmo de surpresa justamente no momento em que deixava o banho envolto em meu roupão e me dirigia para o quarto. Só ali me dei conta da temperatura ao ouvir as pancadas sobre o telhado da minha janela e ver os grossos pingos caindo inclinados e desfazerem-se contra os para-brisas dos automóveis, agora em marcha lenta e complicando o trânsito. Sobre a cama a vestimenta completa para a ocasião há muito esperada. Um padrinho de casamento não pode se apresentar de qualquer jeito diante dos convidados da noiva. Olhei para o terno azul marinho, a gravata azul e branca e a camisa lilás, todas as peças já muito bem passadas por Filomena e estendidas à minha espera.
Finalmente, depois de todo aquele tempo de espera e impaciência, já elegantemente vestido, conseguiria sair utilizando um guarda-chuva sem o risco de me molhar, pois que a intensidade da chuva diminuíra a contento. Mesmo assim, preferi as marquises das lojas, não tão preocupado agora com a pouca chuva que caía, mas com a displicência dos veículos ao passarem sobre as poças que se formaram; um banho era tudo que eu não desejava. Estava absolutamente certo de que todos na igreja torciam para que isto não acontecesse, para o bem de uma cerimônia de bodas que já estava marcada pelo atraso, ao menos o meu. Atravessei no meio dos carros para o outro lado da rua e entrei num taxi que atendera ao meu sinal, mas tivemos que ouvir as buzinas e os impropérios de outros motoristas irritados pela ousadia do motorista que invadiu o espaço para garantir sua corrida.
Quem já andou de carro pelas ruas do Rio de Janeiro, não precisaria sequer dar-se ao trabalho de ler o que estou relatando; já é conhecedor do drama. Então, a fim de poupar esses leitores do que passei durante aquela viagem de quarenta minutos ao meu destino, viagem que se faz em quinze minutos em dias normais, vou pular esta parte e ir diretamente à minha chegada à igreja.
- Imagina se a cerimônia acontecesse no horário estipulado - disse minha sobrinha ao se aproximar, no momento em que eu descia do automóvel. Formaria comigo o casal de padrinhos. Como eu pensei, não fui o único a ficar no engarrafamento.
- Quem mais está faltando? - perguntei.
- A figura mais importante, a noiva.
- Mas ela mora a menos de três quadras daqui! - eu disse, apalermado.
- É isto que todos estão estranhando. Estou muito preocupada, titio.
- Você deve ter suas razões para estar assim preocupada. Conhece a noiva muito melhor do que eu; e são mulheres e possuem os seus segredos. Não precisa abrir para mim se não desejar.
- Olhe para isso. Imagina o investimento e o desperdício - disse minha sobrinha, apontando na direção da entrada da igreja, onde se concentrava boa parte dos convidados. Não sei se fez isto para fugir à minha solicitação, mas a verdade é que estava mesmo aflita.
O pai de Cirlene, a noiva em questão, não poupara sua fortuna no grande evento; a elite estava ali em peso: diretores de televisão; empresários da rede hoteleira da qual era presidente; donos de restaurantes e casas noturnas; representantes da moda; modelos famosos e artistas estavam presentes. O prefeito se fez representar por um dos seus secretários. Carros luxuosos se enfileiravam nos dois lados da rua. Pessoas elegantes continuavam chegando. Mulheres lindas, em seus vestidos glamorosos e seus decotes provocantes. Homens poderosos desciam de seus carros importados, cujas portas eram escancaradas por seus motoristas particulares, exibindo-nos à multidão de convidados. Nos jardins da catedral eram poucos os espaços onde não havia gente. Muitos deixavam seus bancos e vinham para fora respirar o ar da noite que já se aproximava, fumar ou saber da razão de todo aquele atraso.
Absorto em todo esse panorama, não reparei a ausência de minha sobrinha. Corri ao redor minha visão, mas sem sinal de sua presença.
Há poucas quadras dali, na mansão dos Donatello, uma mulher infeliz, no dia que deveria constituir na sua maior felicidade, chora, sentada à beira de sua cama causando, nas que dela cuidam com todo carinho, vestindo-a e maquiando-a, preocupação e desespero. Rompe quarto adentro Nena, minha sobrinha e, vendo-a naquele estado, não contém também as lágrimas.
- Oh! Meu amor, como está sofrendo!
- Por favor, me ajude! Não sei o que faço de minha vida - grita em desespero Cirlene, jogando-se nos braços da amiga que sentara-se ao seu lado na cama.
- Eu avisei, eu avisei: não marque esse casamento; você não ama esse homem.
- Mas ele é tão bom. Leo é um cavaleiro; e louco por mim, mas... mas...
- Mas você não o ama; o fará infeliz. E tudo por causa de Benício, essa é sua verdadeira paixão, o seu verdadeiro amor.
- Acabou, está tudo acabado. Papai o odeia.
- Esqueça aquela humilhação. O amor de vocês está acima de tudo. Ele o ama. Procure-o, viva a vida de vocês sem depender da fortuna do seu pai. Trabalhem e poderão vencer juntos, vivendo para ao amor e a independência.
- Mas, e o Leo? Não posso decepcioná-lo. Todos esperam a minha chegada - disse, levantando-se.
- Não faça isto! Não entre num casamento infeliz para satisfazer os caprichos de um pai egoísta e de uma sociedade machista.
- Mas Cirlene já estava fora do aposento e descia as escadas para ganhar a porta da rua.
Na catedral a impaciência já dava lugar à inquietação e às queixas. Vez ou outra uma personalidade e seus acompanhantes furavam o bloqueio da multidão e entravam em seus automóveis, desaparecendo dali, contrariados. A noite caíra de vez. Destacavam-se o brilho das vestes, o ouropel dos colares, dos brincos, os círios e os ornamentos da nave. Entrei e sentei-me em um dos bancos da última fileira. Padrinhos, damas de honra, acompanhantes haviam-se dispersados. Não obedeciam mais a quaisquer regras de posicionamento que haviam ensaiado. Ao fundo, próximo do altar, o arcebispo, sempre sorridente e simpático, acalmava o pai e o noivo. O primeiro já suava profusamente, pálido e inquieto. O outro ia e vinha, colado ao aparelho celular, sem conseguir o intento de completar a chamada.
Eis que se nota um alvoroço e todos se apressam a retomar seus lugares abandonados. Chegara a noiva. O pai, ao seu lado, enquanto caminham em direção ao altar, percebe sua palidez e os olhos ainda marcados pelo choro recente.
- O que tem, meu amor? Não está feliz?
- É claro que sim - responde Cirlene, friamente.
A seguir, música de fundo, o sorriso dos que circundam a cena, as orações do religioso celebrante e todos os dizeres e pregações e rituais dessa hora sublime, dentre eles a pergunta de praxe de toda cerimônia matrimonial.
- Se há no recinto alguém que seja contra essa união, que fale agora ou se cale para sempre.
- Sim, há; eu. E vou dizer por que. Ela não ama esse homem e não pode unir-se a ele, pois é de outro o seu coração.
Todos os olhares voltaram-se para Nena que, ao meu lado, pronunciara aquelas palavras.
O silêncio tomou conta do ambiente. O noivo ficou pálido e sem ação. O pai correu em direção à filha e encarou-a, estupefato.
- Filha! É verdade isto?
- Desculpe, papai! - balbuciou e desmaiou em seus braços.