Aprendiz de necromante
Quando abri a porta, Milena estava diante de mim com um gato preto no colo. Um gato grande, gordo e de pelo lustroso, que eu conhecia muito bem. O único problema é que eu o havia enterrado no cemitério de animais, no dia anterior.
- Me diga que você não fez isso - disse consternado para Milena.
- Não vai me convidar para entrar? - Replicou ela com um imenso sorriso. Nos braços dela, o gato parecia completamente relaxado, e me encarou com seus olhos amarelos.
- Entre - afastei-me da porta para deixá-la passar. - Mas por acaso eu lhe pedi para trazer meu gato do reino dos mortos?
- Lamento não ter podido vir antes, - minimizou ela, sentando-se no sofá, sem soltar o gato - teria lhe evitado o trabalho de providenciar o enterro.
- Você não respondeu minha pergunta - redargui, sentando-me numa poltrona em frente à ela. - O que eu vou fazer com um gato zumbi?
- Não é um gato zumbi, - assegurou Milena - é apenas um gato redivivo. Você sabe, eu estou aprendendo necromancia e precisava de algum animal pequeno para treinar as técnicas de ressuscitação. O Manhoso era perfeito, pois me permitiu unir o útil ao agradável. Nem precisa me agradecer, foi um prazer.
- Você podia ter usado um passarinho, um besouro, sei lá - atalhei. - Continuo não gostando da ideia de ter um gato redivivo andando pela minha casa. O Manhoso morreu e já estava me acostumando com a ideia de que não iria mais vê-lo. É assim tão ruim que as pessoas e os bichos cumpram seu ciclo natural e morram?
Milena deu de ombros.
- Mas as pessoas estão apelando para clonagem dos seus animais de estimação. Pensei em me especializar em necromancia de pets; é algo muito mais pessoal, já que você tem um original que não corre o risco de morrer, porque já está morto.
Apontei para o gato, não estranhamente calmo, já que em vida ele fora exatamente assim; quase desinteressado do ambiente e das pessoas que nele estavam.
- Além da obviedade de que não vão morrer, o que mais se ganha com esses seus animais ressuscitados?
- Você vai economizar com ração e com areia para gatos - enumerou ela. - Também não vai mais se preocupar com despesas no veterinário e datas de vacinação.
Ergui os sobrolhos.
- Gatos são animais imprevisíveis; esse Manhoso redivivo ainda mantém o mesmo temperamento do falecido?
Milena pegou o gato e o colocou cuidadosamente sobre o tapete da sala. Ele me encarou por um instante e depois pulou para o meu colo. Acariciei-o, e o pelo estava frio.
- Agora parece um casaco de pele, mas não vai dar pra vestir; ah, e também não ronrona - concluí decepcionado.
- Tecnicamente, ele está morto - relembrou Milena. - Você sabe, não se pode ter tudo, mesmo usando necromancia.
E como se tivesse lembrado de algo muito importante, abriu novamente um sorriso:
- Ah, e ele não vai mais trazer presentinhos indesejados para você!
- Nada de ratos agonizantes e passarinhos estraçalhados? - Inquiri.
- Nunca mais - assegurou Milena, mão direita erguida num gesto solene.
- Acho que agora vi vantagem - ponderei.
E para que ela não se animasse em demasia:
- Mas acho que deveria se concentrar em ressuscitar cães; afinal, são animais com um temperamento previsível. Alguns donos até vão agradecer por não terem mais que ouvi-los latir.
- Vou anotar sua sugestão - prometeu ela, erguendo-se. - E não vou cobrar pelo trabalho com o Manhoso, me serviu como modelo de estudos. Só vou lhe pedir que me dê um retorno sobre a convivência com ele, vai me servir para aperfeiçoar as melhorias em que venho trabalhando...
Eu não sabia a que melhorias ela estava se referindo, mas naquela noite, ao acordar e ir à cozinha para ir beber água, passei pela sala e vi Manhoso placidamente deitado no sofá. Mesmo com as luzes apagadas, eu conseguia vê-lo nitidamente: um brilho vermelho vinha debaixo dele, como se estivesse sobre brasas. Acariciei-o e agora senti que ele estava morno, não exatamente como quando era vivo, mas algo bem próximo disso.
- Perfeito, - repeti para mim mesmo - perfeito.
Manhoso apenas me encarou com seus olhos pretos e redondos, como se houvesse entendido o que eu acabara de dizer.
- [08-03-2023]