WILBUR E A ARTE.

Wilbur Bale esbravejava, caminhando em círculos pelo estúdio enquanto dava vazão à sua raiva. Seus impropérios voavam pelo ar, atingindo-me com a mesma frequência que seus perdigotos. "Malditos filisteus!", ele gritava, com os olhos cheios de fúria. "É um acinte! Como ousam?" Quanto a mim eu pacientemente ouvia os primeiros e tentava me desviar dos segundos.

Embora sua pergunta fosse retórica, eu sabia que ele esperava uma resposta. Mas eu também sabia que ele não estava aberto para uma discussão racional no momento. Meu papel como amigo era ouvir seus lamentos e dores, reais ou imaginárias, e deixá-lo desabafar.

No entanto, também sabia que a sinceridade pode ser tão perigosa quanto as drogas, se não for administrada com cuidado. Conhecia Wilbur Bale há uns 20 anos e sabia que precisava medir minhas palavras. "É uma injustiça, Wilbur", eu disse, tentando acalmá-lo. "Mas você sabe que a crítica é parte do jogo. Nem todos irão entender sua arte da maneira que você deseja."

Wilbur parou de caminhar e me encarou. Seus olhos ainda estavam cheios de raiva, mas também havia uma tristeza profunda neles. "Eu sei disso meu caro Walter", ele disse, desanimado. "Mas é difícil não se sentir atacado quando colocamos tanto de nós mesmos no que fazemos! A arte não é somente minha paixão mas é a minha vida! "

Sabia que não havia muito que eu pudesse fazer para aliviar sua dor, mas ainda assim tentei confortá-lo. "Você é um artista incrível, Wilbur", eu disse. "Não deixe que os críticos de arte te desanimem." Wilbur me lançou um sorriso triste enquanto parecia absorver as minhas palavras.

"Venha, meu caro Walter", ele me convidou, tentando dissipar a nuvem de desagrado que pairava sobre nós. "Não vamos permitir que esses dissabores perturbem este momento. Prove deste magnífico chá preto da China..."

Wilbur parecia ter se acalmado um pouco, mas os efeitos físicos de sua indignação ainda eram evidentes em sua face vermelha e olhos injetados. Enquanto eu me servia de uma xícara do fumegante líquido, observava o estúdio e algumas das últimas obras de Wilbur. Havia naturezas mortas, paisagens bucólicas e até mesmo algumas figuras nuas, exibindo uma multiplicidade de visões do mundo. Essa era a genialidade de Wilbur, essa habilidade em extrair beleza em traços vigorosos e inconfundíveis, deixando atônitos os críticos e invejosos os desafetos.

No entanto, ao examinar suas obras atuais, não conseguia mais discernir aquela vitalidade e genialidade que tanto o caracterizavam. Tristemente, reconheci que os críticos estavam, em sua maioria, corretos em suas opiniões. Mas eu não tencionava dizer isso em voz alta, pelo menos não naquele momento. Preferia refletir sobre qual foi a época em que Wilbur pareceu perder o caminho criativo que o levou à fama e ao reconhecimento. Eu não tinha esta resposta.

"Que tal uma visita ao The Falcon? Precisas de um pouco de ar fresco", sugeri, levantando-me da cadeira com uma salivação antecipatória pelo pensamento de uma caneca gelada de cerveja e um suculento pernil. Claro, estava contando com a generosidade de Wilbur que nunca me decepcionou neste quesito, pois a mim sou apenas um pobre e famélico escritor.

"Sim, tens razão, vamos lá!", respondeu Wilbur sem muito entusiasmo. E assim, saímos à rua sem demora e esperamos por pouco tempo na porta de casa até que um cocheiro, com um libré de aparência um tanto enrugada, nos conduziu de carruagem em direção ao The Falcon - nosso destino que não era muito distante.

Acomodamo-nos em uma mesa junto à janela, que nos proporcionava uma vista privilegiada da rua. Enquanto aguardávamos ansiosos nossas cervejas e refeições, Wilbur retomou a conversa:

"Dizem que sou velho e que perdi o talento que tinha na juventude. São apenas néscios, eu lhe digo. Acaso não ficam melhores os vinhos com a idade?"

Parei por um momento para refletir sobre essa analogia. Claro que Wilbur não é um vinho, na melhor das hipóteses, poderia ser comparado a um barril, devido à sua forma rechonchuda adquirida com o passar dos anos. Quase dei uma pequena risada á socapa diante dessa imagem divertida, mas me contive diante da seriedade da conversa.

"Compreendo o que queres dizer", respondi cuidadosamente, "mas acredito que a arte é diferente dos vinhos. É possível que um artista possa continuar a criar obras de grande qualidade em sua velhice, mas isso não é garantido. O talento pode desvanecer-se com a idade." Wilbur franziu o cenho, evidentemente descontente com a minha resposta. Mas antes que pudéssemos retomar a discussão, nosso suculento pernil e cervejas geladas foram servidos, e começamos a desfrutar da refeição.

Nossa bonança durou pouco. Wilbur retomou a conversa enquanto atacava seu prato de pernil com entusiasmo: "É verdadeiramente lamentável os tempos sombrios em que vivemos! Apesar das inúmeras invenções e maravilhas da tecnologia que temos à nossa disposição, a população em geral parece estar mais ignara, mais inculta, mais... mais..." Wilbur procurou em vão por um adjetivo que pudesse expressar sua frustração.

Nesse momento, uma senhora bem maquiada, já com suas sessenta primaveras, que eu não conhecia, entrou no recinto. Usava plumas espalhafatosas e parou em frente à nossa mesa, cumprimentando Wilbur efusivamente: "Wilbur, meu querido! Que prazer revê-lo! Não só prazer, mas é sempre uma honra estar na presença de um grande artista!", disse enquanto o abraçava e beijava suas bochechas. Wilbur, entre constrangido e feliz por tamanho reconhecimento e afeto, me apresentou a senhora chamada Mary - o sobrenome não me lembro mais.

Eu observava a cena com curiosidade, imaginando qual seria a conexão entre os dois. Mas antes que eu pudesse fazer qualquer pergunta, Mary continuou: "Lembro-me de quando eu era mais jovem e frequentava muito as exposições de arte. Seu trabalho sempre foi tão inspirador, Wilbur. Você é um dos poucos artistas que ainda fazem arte de verdade!" Wilbur sorria entre um ar paternal e apalermado e a qualquer momento não me surpreenderia se ele começasse a literalmente babar de prazer. Eu iniciei a achar tudo aquilo sumamente divertido. “Bondade sua”, “Não é para tanto” repetia ele regularmente enquanto ouvia um longo panegírico mostrando uma pretensa humildade.

Com a partida da senhora Mary, continuamos a saborear nosso repasto. Mas, Wilbur logo soltou uma exclamação exultante: "Ah, meu caro Walter, como é gratificante encontrar almas sensíveis que ainda reconhecem a verdadeira arte! Isso me faz ter esperanças no futuro da humanidade!" Enquanto ele falava, seu semblante se iluminava e sua voz se tornava mais enérgica. Pude ver até mesmo em seus olhos uma chama de entusiasmo. Depois começou a discorrer sobre assuntos ordinários como os últimos resultados das corridas de cavalos, a recente greve dos cocheiros e os infortúnios causados pelos altos impostos que sufocavam a população.

Em dado momento, a conversa cessou e nós ficamos em silêncio, contemplando a paisagem urbana além da janela. O mundo lá fora era uma tapeçaria de cores e movimentos, tecida pela rotina dos transeuntes e dos vendedores ambulantes que vagavam. Foi então que avistamos um cachorro, esquelético e faminto, perambulando por ali.

Do outro lado da rua, um sapateiro, absorto em seu ofício, notou a presença do animal e prontamente jogou um grande osso de boi velho e seco em sua direção. Para nossa surpresa, o cachorro habilmente saltou no ar e apanhou o osso antes que ele pudesse atingir o chão.

Observando o cachorro devorar o osso com voracidade e babar de prazer, Wilbur finalmente quebrou o silêncio. "Percebe, meu caro, como a vida pode ser cruel? Este cachorro já não possui mais a vitalidade que tinha antes, e agora se contenta com um mero osso velho e seco como se fosse um grande banquete. É uma cena triste de se ver."

De repente, como se uma epifania tivesse se abatido sobre ele, Wilbur interrompeu abruptamente sua fala. Seus olhos foram atraídos novamente para o cachorro na rua, e então para a senhora sentada em uma mesa próxima a nós. Sua face, antes tão plácida, agora parecia estar tomada por uma intensa consternação.

Inesperadamente, Wilbur uniu suas mãos em desespero e fez algo que nunca o vi fazer nos vinte anos que o conheço. O grande e orgulhoso Wilbur começou a chorar copiosamente…