ESSA MANCHA NA CALÇA

Puxa! Que falta de sorte sair com uma calça nova e, ao voltar à casa, descobri-la manchada.

Na verdade, tanto faz se é calça nova ou velha. Ou se é camisa social, esportiva, camiseta, bermuda ou qualquer outra roupa. Ninguém gosta de ver-se manchado.

Que mancha será essa? De algum molho que pulou do prato ou, quem sabe, escapou do sanduíche? Pela coloração ligeiramente marrom, trata-se, quase certo, de molho de carne. À luz do sol, a tonalidade já se afigura mais avermelhada e gera suspeita sobre a culpa do tomate. Ketchup ou extrato? Ah, não vem ao caso.

Manchas brancas causam dúvidas igualmente. Podem ter sido causadas pela espuma do dentifrício. Revelam, no caso, a lambança do tipo supostamente cuidadoso com a higiene dental que deixa escapar a saliva cremosa no melhor estilo dos babões. O branco também pode resultar do suor misturado com o desodorante, do colírio e de diversas fontes.

Manchas são sempre incômodas, pouca importa sua origem. As brancas nada têm a ver com a paz, muito pelo contrário. Tiram a paz do portador da mancha e expõem-no à crítica implacável das rodas sociais: “viu a calça do Fulano? Toda respingada de branco. O que ele andou aprontando?”

Roupas manchadas, prelúdio de manchas piores. De gente manchada pelos desvios de conduta, pelos vícios, pelo descaso, pela indiferença, pela falta de sensibilidade ante o drama alheio. É mancha pra todo lado! Manchas cobrem os olhos, bloqueiam os pulmões, afetam os sentidos. Sociedade manchada, curiosamente parece diluir-se, desmanchar-se sem remédio ante o contágio das manchas.

Mas deixemos momentaneamente de lado as impurezas alheias.

Que mancha é essa, afinal, que veio estragar o final de semana promissor? O tipo olha para a marca deletéria do tecido, num misto de raiva e intriga.

Enraivecido pelo infortúnio e por ter de trocar de calça, após escolha tão atinada e que consumiu boa parte do seu tempo. Pensar de novo, começar de novo, tarefas mui exigentes para mero fim-de-semana.

Intrigado com a origem daquele corpo estranho no seu universo particular, a prejudicar e a impedir o usufruto da calça recém-comprada. Teria comprado a mercadoria já conspurcada, sem percebê-lo? Redireciona seu rancor, de imediato, para a imaginada desonestidade do vendedor e talvez até do fabricante. Dispara conjecturas sobre o mal do lucro fácil, avaro e indiferente aos interesses do consumidor.

Concluída mais uma etapa de recriminação das vilanias da sociedade atual, baixa o espírito construtivo de solucionar o problema da mancha na calça.

Como dizem que roupa suja se lava em casa, recorre à sua máquina lavadora, tão prestimosa. Insatisfeito com o resultado dessa vez, parte para a lavanderia próxima.

Agora sim! Calça limpa, pronta para uso futuro. Ao pendurá-la no guarda-roupa, surpreende-se em ver a mesma mancha tenebrosa na calça ao lado da que acaba de guardar. Como pode?

Mais uma para a lavanderia. Recebe-a limpa, mas sua imediata satisfação desfaz-se ao deparar-se com outra peça de roupa manchada.

Sua camisa favorita, que desagradável! Mancha aparentemente dos mesmos tamanho e formato, mas mais amarelada do que as anteriores.

Desalentado, retira a camisa do cabide e senta-se a mirá-la como se pudesse limpá-la com o mero olhar. Nem que soubesse rezar, conseguiria tal façanha. Após mais instantes de desalento, percebe que outra mancha se mostra no sofá.

Teria sido ele o causador ou seria culpa da faxineira? Levanta-se com o impulso de uma imprecação, para perder as forças logo a seguir, ao constatar que a cortina do quarto também está manchada.

As manchas parecem multiplicar-se, insolentes e incansáveis. Na calça que usa no momento, na toalha da mesa de jantar, no tapete da porta de entrada, no quadro que ganhara de aniversário, na cortina do chuveiro, nos sapatos que tirou ao chegar, no terno que a tinturaria entregou dois dias atrás, em todas as paredes e tetos do apartamento.

Até as janelas apresentam manchas e deixam ver outras nos edifícios vizinhos, na rua, bem como nos carros e pessoas que por ela transitam. Há manchas no céu e nas nuvens.

Nada escapa. Aterroriza-se em pensar que são seus olhos que tudo vêem manchado. Sinal de doença grave ou mesmo de cegueira a caminho? Seus últimos exames de saúde foram normais. Até mereceu o elogio de seu clínico geral.

Sai de casa para melhor testar a visão. Alivia-se parcialmente ao ouvir uma senhora perguntar ao marido se ele estaria a perceber manchas aqui e acolá, o que mereceu pronta e serena resposta positiva. O vizinho que regressa da padaria também lhe comenta, como algo natural, as manchas vermelhas ao longo da calçada.

Então, passa a ser normal ver tudo manchado? Estariam todos contaminados, mas, ao mesmo tempo, saudáveis? A epidemia provoca o isolamento, feito peste, mas, paradoxo dos paradoxos, serve para irmanar os contagiados.

Ainda um tanto hesitante, o tipo procura adaptar-se à nova realidade. Resta-lhe a obrigação de conviver com manchas de todo gênero. Impregnadas no vestuário, nos objetos e nos indivíduos como ele.

Manchas que tomam conta do bairro, da cidade, do país e dos continentes.

Que se projetam rumo ao infinito em meio às manchas siderais.

Julho 2022.