O SECRETÁRIO

O SECRETÁRIO

O endereço da presidência da fábrica de louças de porcelana era um prédio antigo, de dois andares, ainda com assoalho de madeira nobre e bela escadaria do mesmo material. A anciã, filha dos primeiros donos, frequentara aquela casa dia após dia nos últimos 30 e tantos anos, dos mais de 50 da tradicional empresa. Viúva e sem filhos, de repente sentiu-se velha, velha demais para tal encargo, subir até descer aquela escadaria se tornara um sacrifício... pretendia passar o cargo e, enfim, descansar. Passar para quem ?!

Não prepara para isso, não tinha primos ou filhos e seu secretário, ao qual gostaria de deixar o encargo, era exatamente isso... um secretário, o melhor deles ! Madame Constance estava irritada naquela manhã, mais solitária do que nunca. "Estrela Vésper" brilhante e sem companhia e êle, ali, 30 anos secretariando. Osvaldo já fôra mais bonito, um rapagão de boa figura, lembrou ela, mas 3 décadas de trabalho em escritório o transformaram num barrigudinho meio careca. Uma pena... em algum momento da vida dela chegou a ter algum interesse "menos patronal" por aquele serviçal competente, porém jamais viu "seu Vavá" levantar os olhos para ela.

Já gostara daquele respeito todo, advindo de seu poder lhe destinado pelo pai, desde quando jovem... CONSTANCE, a batizaram e persistente ela o foi em tudo, fazendo juz ao nome. Aprendeu até equitação, embora detestasse cavalos... e homens rudes, quase todos à sua volta ! Osvaldo, o "seu Vavá", tinha alguma educação, refinamento, mas seu jeito servil atrapalhava demais e a incomodava, não conseguia ver o homem atrás de toda aquela competência de empregado, eficiência de gerente-geral, presteza em relação a pedidos dela ou exigências do trabalho.

Cansou de espera, estava mesmo irritada naquela manhã e resolveu "pegar o touro à unha", se escreveria em romances antigos, que êle os lera todos. Aliás, ROMANCE era a única coisa que não tivera em sua vida e, agora, lhe parecia ser a coisa mais importante dela.

-- "Osvaldo, você precisa ser mais ousado, audaz... não tomas uma decisão sem me consultar" ?!

-- "Mas, o que há de errado nisso, dona Constância... o senhora é a presidente" !

-- "É CONS-TAN-CE, "seu Vavá"... já lhe disse mil vezes, e preciso de um vice-presidente (ou quase isso), dirijo a empresa sozinha todos esses anos" !

-- "Estamos no Brasil, senhora, e aqui é... Constância ! Ouvi a senhora me chamar de "Vavá" ?!, questionou assustado.

-- "E daí ? Todos o chamam assim ! Outra coisa: "aqui" não é Brasil, é a minha empresa e, nela, sou CONSTANCE" !

-- "Ora, ora, porque não disse antes ? Sempre a chamei dessa forma... me desculpe se a aborreci todos esses anos" !, replicou com leve tom de ironia na voz, surpreendente "pitada" de coragem.

-- "Desculpas aceitas, "VA-VÁ", mas isso é pouco, me convide para jantar, é o mínimo, depois de tantos anos "me insultando" !

"Touchè", dera bela estocada no brio do homem "oculto" sob aquela camada de servilidade irritante. Queria ver "o leão sair da toca" ! Osvaldo julgou que fosse brincadeira:

-- "E onde a madame pretende jantar ? Num "pé sujo", na birosca da Raimunda" ?!, replicou com alguma agressividade.

-- "Não me ofenda, nunca fui MADAME, trabalho desde jovem e você sabe disso... por acaso, conheces a Confeitaria Colombo" ?

-- "É local chique demais para empregados, dona CONS-TAN-CE... pensei que estivesse brincando, senhora" !

-- "Pois não estou... e a Colombo é um lugar comum agora, os tempos são outros e homens andam mostrando a cueca por aí" !

Osvaldo tossiu, mudou de cor, a coisa era séria, não podia levar a patroa no seu "Fusca". Ademais, o que não íam falar os demais funcionários, ao ver "aquela história" ?!

-- "Isso não é nada prudente, dona Constance" !

-- "Veja como um TESTE para a vice-presidência, Osvaldo" !

-- "Mas, não temos vice-presidente, senhora" !

-- "Podemos ter... cabe ao senhor a decisão ! E vamos ao jantar no meu carro, esteja em casa às 8 em ponto" !

Osvaldo teve um fim de tarde horrível... sua melhor roupa era péssima, a garganta estava seca, no rosto um ar de choro, olhos arregalados, mãos frias, jeito de quem viu fantasma. Seguiram calados no carrão de luxo, quase como dois desconhecidos... Constance se arrependeu, ao invés de despertar um macho enrustido sob a farda de empregado, vira "nascer" um garoto medroso, que derramou vinho na toalha de linho da mesa e tremia feito cãozinho perdido.

A noite foi um "desastre", Osvaldo com a sensação equivocada de que a patroa tentara ridicularizá-lo e, ela, com a certeza de que perdera ali seu melhor funcionário. Eram "2 Mundos" que não se uniam !

"NATO" AZEVEDO (em 19/fev. 2023, 5hs)

OBS: conto surgido de um sonho de 30 segundos.