UBÍQUO
Havia um poço de águas turvas nos jardins de minha memória. Eu era personagem principal de um conto barroco e minhas asas eram galhos de umbuzeiro. Com meus cambitos pulei cercas com toras e arame farpado e nunca me feri. Porque era aço. Nas minhas peraltices de malouvido, enfrentei regras e normas de manuais inusuais e mal escritos e era transgressor. Transgredi-me. Virei ao avesso minhas deficiências físicas e feri dragões das eras escuras e das bruxas luxuriantes dos tempos das mentiras açodadas. Ergui muros e muralhas com minha carpintaria de alusões metafísicas e surreais. Muitas vezes lambi versos destrambelhados paridos com minha verve analfabeta e cheia de algaravia. Porque metalinguagem. Dispensei demiurgos e seus ritos estéreis, porque dadaísmo. Embrenhei-me nas florestas enfeitiçadas e convivi com os mistérios e mitos disformes nas suas cavernas; nos seus rios banhei-me de lama e mantive minha pele amarelada de tisico. Mas pude. As lembranças daquele rio de águas mexidas me acompanham e se deitam comigo. Varam madrugadas. São minhas amantes voluptuosas e insones. Porque devassas. Me desossam e meu esqueleto jaz no laboratório das investigações científicas anacrônicas dos experimentos vívicos e inúteis. Porque rebelde. Resisto em minhas assertivas de monge solitário nessa aldeia global de pajés obtusos. As garças dos lagos urbanos estão sem asas; os trilhos, enferrujados; as barcas, sem remos; o porto, sem navios; o homem, sem alma. Vácuos há nos quais habitam meus desejos de uma oca sem civilização impositiva. Moldo meus impulsos de acordo com as pulsações dos meus desejos. Homem sem mundos. Tento. Dizem: desperta, tu que dormes. Teus lençóis e teu colchão estão rotos. Abre-te, sésamo vivente e mumificada. Teimo. Resisto. Hei de. Dom Quixote? Talvez. Mantenho-me. O espelho me disseca. Mula. Tenho pele de casco de bode, involuo. O que há no globo ocular pra que eu mude? O asfalto é de piche, os prédios são de cimento e tijolo, o homem é de ódio e vingança e sisudez e vetustice. Recuo? Jamais! Desejos entranhados nas veias da minha testosterona alivio-os com os livros. E música. E a natureza. Sou um ubíquo. O poço dantes é o rio dagora. Habito-os. Navego-os. Sem remos. Só me prostro ante o Eterno. Não me presto a anho. De pocilgas desentendo. Diferente do pródigo, nunca fugi. Porque resistência. Às avessas do fariseu, sou um publicano. Porque pensante. A porta que se me abre não é de caixa forte, as janelas são ventanas e ventanias são meu ventilador. Tenho um cavanhaque agalegado e os cabelos sararás e os olhos cor de farol. Seco de carnes, afrontador farto. Assim é se me parece. Os absurdos não me assustam, porque os habito. Os baques não me prostram, porque cavalo baio. Sei somar dois menos cinco e multiplicar dez vezes divididos por zero. Sem escolas. Meus documentos: mãos calejadas e ranhos. E sobrevivo. Mais dia menos dia serei um nada. E continuarei a banhar-me no poço de águas levianas e despudicas. Que assim seja.