A MENINA DO XALE COR-DE-ROSA
Eu a conheci ainda nos primórdios da sua vida, quando certa vez, num final de tarde dum frio dia de Junho, eu passava pela sua calçada.
Parei para observá-la.
Ela estava ali, sentada na escadinha de ladrilhos vermelhos anexada a um longo corredor que, bem lá no fundo, dava acesso à entrada principal da sua casa.
Da menina lembro que espargia uma essência de colônia de alfazema.
Tinha os cabelos longos e molhados -talvez por um banho recém tomado- e ali tive a forte impressão de que esperava por alguém.
-Entra logo, menina, está ventando e você vai pegar um baita dum resfriado!-aconselhou uma voz feminina vinda lá de dentro.
Parecia absorta , com os olhos perdidos, todavia, fixos na neblina que caía lá longe, como se estivesse ela numa página dum livro, como se adentrado um outro mundo intangível e ininteligível às suas possibilidades de criança.
Um mundo cuja sua estória futura tive a sensação de que ela parecia já conhecer.
Ao seu lado, vi que a sua companhia se tratava apenas duma brisa de sonhos que soprava um carinho leve, a balançar a coreografia da dança das margaridas brancas, florezinhas também recém brotadas que pareciam lhe saudar por algo que não pude compreender; como se num cumprimento ensaiado ali no seu jardim de menina simples, enquanto a mesma brisa também lhe penteava os derradeiros cabelos ainda umedecidos.
Tratava-se ela dum ser bem miúdo e sobre seus ombros franzinos algo me chamava demais a atenção.
Lembro- me dum xale cor-de-rosa que lhe pousava nos ombros, firmemente preso às suas mãos a frente de seu tórax, peça que parecia novinha em folha, a que trazia como um tesouro encontrado e que, com certeza, tratava-se de algo artesanalmente feito por uma crocheteira que dominava a tal arte de se entrelaçar em lã todos os sonhos na cor da felicidade.
Uma artesã que prometia dominar todos os fios dos frios.
Vez o outra, lembro-me que a menina voltava os olhos para admirar e acariciar a arte que lhe aquecia.
Naquela época, os xales de lã eram a mais recente moda que havia se espraiado pelos ombros de todas as meninas, já candidatas a mulheres daquela geração, o que tão sedutoramente as agasalhavam dos frios iminentes.
De repente, brotou uma garoa que ensaiava fechar o cenário. Parecia lhe ser a primeira delas.
-Entra menina, não vou pedir outra vez! Está frio...e você vai molhar o xale que acabou de ganhar da sua madrinha!
-Já vou mãe, só estou esperando...mais um pouco...
Ela, então, apertava cada vez mais o xale cor- de -rosa contra o peito, com se quisesse segurar o que é impossível de reter ou deter.
Esperava, de fato, por algo, ou por alguém que talvez nunca lhe chegasse.
Tinha aquela menina medo nos olhos e perene poesia no coração.
De repente, a neblina adentrou a noite.
Até que cansada do frio daquele tempo na escada, levantou-se dos cacos de cerâmica e obedeceu ao pedido da mãe.
Ao cruzar a porta de entrada foi surpreendida.
-Vamos acender as velinhas dos quinze anos e cantar os "parabéns"!- decidiu a madrinha.
Enquanto a canção soava...a menina voava...para o que já sabia.
Conto que vi de longe que, lá dentro e já mais acolhida, ousou tirar o xale-cor-de rosa dos ombros e o guardou na bagagem da vida.
Desde aquele dia , a menina nunca soube explicar o porquê da sensação do já saber que precisaria do seu xale cor- de -rosa para todo o seu sempre.
Ouvi dizer que até hoje o segura firme sobre o tórax toda vez que o frio sopra forte e a garoa desce na ameaça de
umedecê-la.
É quando se agasalha de todo o tempo, ao mesmo tempo que lhe soa o igual pedido da mãe, ecoado na névoa que cai:
"-entra logo, menina, vai pegar um resfriado!"
Ao que prontamente a menina responde a si mesma com um sorriso de alívio:
"Sim, é só mais um resfriado! ".
Então, abre a bagagem lotada deles, retira o agasalho cor- de rosa e, sobre seus ombros espoliados, o lança ao aconchego dos mesmos sonhos ... tudo sob o aplauso admirado das mesmas margaridas do seu jardim.
-Já vou mãe, só estou esperando... mais um pouco...