Um anônimo familiar

Escrito usando o pseudônimo de "M. Dimagisto" para o Concurso Literário das Bibliotecas do IFC - Rio do Sul (SC), Edição 2022, tendo conquistado a primeira colocação.

Era domingo. Tinha uma passagem para o meio-dia. Tomei meu café. Da janela do quarto eu via as folhas na calçada. Podres, secas, em blocos. A chuva as juntou ontem, onde formou as poças. O sol de manhã as secava. Não muito longe um anônimo, que me era familiar no cotidiano, mas que nunca soube o nome.

Ele falava consigo. Às vezes cuspia saliva no gramado mais próximo. Assim fez, enquanto passava um cão de rua. O cão parou um pouco a notar a figura diante de si, quem sabe a primeira bocada de seu dia provinha daquele senhor. “Boa tentativa”, eu disse comigo mesmo. Logo o cão o deixou só.

Esse homem usava a casaca bege de sempre, folgada sobre os ombros e braços. Cabelo rente, grisalho, pele vermelha da dura vida. Dedos grossos, como galhos de árvore, apalpando a sacola. Sacolejava. Era sua inseparável sacola branca de supermercado.

Apalpei, por minha vez, a passagem do ônibus do meio-dia que estava sobre a mesa. Era dia de visitar os pais e irmãos. Em outras palavras: tinha uma viagem, daqui a algumas horas, para minha cidade natal. Um pensamento me incomodava. Afinal, nunca parei para conversar com aquele homem. Eu fazia o caminho do meu apartamento ao trabalho, e do trabalho ao apartamento. Na calçada, a uns dez metros do hall do prédio, encontrava meu anônimo conhecido. Do outro lado tinha um parque, que ele frequentava. Também perto tinha uma confeitaria, onde ele vinha sempre tomar café.

Fitei novamente pela janela. O homem se movia rumo ao parque. Normalmente, não passavam muitos carros pela manhã nessa rua. Assim, ele passou a rua tranquilamente. Resolvi naquele instante que iria quebrar nosso silêncio mútuo. Mesmo sendo um senhor estranho a mim, sua obstinação de passar o dia frente a nosso prédio me intrigava. O jeito taciturno, seus olhos perdidos. Sozinho. A história de um ser estranho e solitário me tocava. Não sei o que me impulsionava: curiosidade, empatia, ou estava correndo atrás de um fragmento misterioso de meu ambiente diário.

Comigo mesmo tentei buscar exemplos do passado em meu interior. Já me intriguei assim com alguém? Já me aproximei corajosamente de um estranho e perguntei: “e aí, tudo bem? Pode me contar sobre sua vida?”. Alguns fatos do passado se alinharam um pouco. Mas não tinham as mesmas dificuldades do encontro que se desenhava em minha cabeça. Enfim, concluí o itinerário dos percalços que devia percorrer: passar a rua, fingir que estava despreocupado, chegar perto como se quisesse ir adiante, e perguntar como se a ideia tivesse me chegado de imediato: “nos vemos sempre por aqui não é mesmo?”.

- Nos vemos sempre por aqui não é mesmo? – perguntei, enfim.

Um carro passou, fazendo um ronco de motor desconfortável. Só depois ele virou a cabeça para o lado onde eu estava. Sentado onde estava, as pernas abertas, meio arcado sobre si, parecia um veterano de guerra a encarar o recruta. Sua resposta soou muito natural àquele lugar, como se sua voz encarnasse o parque, a rua, o prédio.

- Pois eu sempre ando por aqui.

Se eu não prosseguisse logo após o momento de silêncio que se passou depois dessa resposta, certamente o silêncio duraria até minha vergonha esgotar e eu voltar derrotado a meu apartamento. Mas meus instintos estavam resignados a manter uma conversação. Assim, continuei:

- Pois é, vejo sempre o senhor sozinho, moras por aqui?

O homem parece que captou minha sede. Desta vez, abriu-se um pouco mais:

- Venho de longe, de um bairro distante. Tenho uma casinha lá. Só volto a noite – calou-se um momento, olhou para o chão, e disse sem olhar para mim, meneando um pouco sua cabeça – nasci em outro país, vim parar aqui quando pequeno.

Estava progredindo. Ao longe algumas pessoas passavam na calçada. Fingi que elas não existiam. Resolvi lançar uma pergunta mais desafiadora:

- De que país o senhor veio? Como o senhor se chama?

Ele ergueu os olhos ao céu:

- Eu venho do céu, eu sou o anticristo.

Não nego a surpresa que isso me causou. Aparentemente mantive minha postura de um estranho respeito. Mas por dentro uma hipótese que eu já vinha formando já estava confirmada: o homem não respondia ao mundo da mesma maneira que a maioria das pessoas. Ele mesmo cuidou de esclarecer:

- Faz pouco tempo saí do sanatório. Aprendi a raspar minha cabeça e a tomar banho todo dia. A noite tomo direito meus remédios. – Fez questão de me dizer quais – vivo assim, até o dia que o Senhor me leve.

Comecei a tomar questão de que anticristo se tratava aquele homem singular. Pois não era desses que os livros de banco de rodoviária costumam tratar. Nem daquele que os pastores gemem em suas pregações. O anticristo estava conformado em seguir seu destino anônimo, morrer e deixar devendo o apocalipse.

- O senhor é religioso? – perguntei.

- Eu vou a missa - respondeu - sigo minha vida na fé do Senhor.

Nessa altura já era de praxe que seu desvio passava pela sua religião. Era um cristão fervoroso? Continuou:

- Vou todo sábado na Igreja. O padre me conhece.

Limitei-me a sorrir. Perdi o rumo das perguntas. Já formulava uma última pergunta, e deixaria o homem em paz. Desta vez, ele me notou:

- O senhor parece um padre.

Não era novidade ouvir isso. Um jovem que perguntava as coisas com aparente interesse inocente. O cabelo de quem acaba de sair para ir à missa. Jeans, camisa e sapa tênis. Eu era mesmo um seminarista. Não tinha passado dez anos, eu quase tinha passado uma temporada no colégio de padres, não fosse uma gripe bem forte e minha decisão de ficar em casa na última hora. Sorri:

- Ah, certo, as pessoas dizem isso, mas não sou um padre.

- Pois tem jeito, é paciente para falar.

O singular anticristo me fazia um padre. Cheguei até esse ponto porque me perdi. Mas discutir o que não sou ou que deixei de ser é dos assuntos mais sem necessidade e que mais me custam manter. Mudei o foco da conversa, afinal, de retorno ao homem solitário:

- Ninguém cuida do senhor?

Ao que ele respondeu:

- O “Senhor” está no céu, já eu não tenho necessidade de ser cuidado, tenho só minha irmã, que cuida de meus remédios.

Insisti:

- O senhor só retorna para casa de noite?

Ele respondeu:

- Apenas de noitinha, passo o dia inteiro no parque. Não sinto frio nem nada.

Eu ia perguntar sobre sua irmã. Porém, nesse momento, ele iniciou um discurso sobre sua missão de anticristo no mundo. Resignado, escutei, encarando a rua, observando o movimento. “Mostrar a todos o caminho” disse um momento. “Seremos todos irmãos”. De novo, o caráter desviado do anticristo profético, aquele que devia enganar multidões. Esse aí é na verdade um anjo caído que quer se passar por homem. Veio para a Terra remir seus erros, e retornar, quem sabe, com dois ou três discípulos.

Me perdi nas palavras de profecia. Meu estranho anônimo, que nem homem se reconhecia, começou a cantar, mais humano do que nunca poderia ter sido. Era a parodia de uma antiga canção raiz sertaneja. Deixei-me ouvir um pouco daquela entonação, até ele se calar. Ele não olhava para mim. Resolvi dizer um adeus, e ele levantou a mão, sem me olhar. Deixei o singular homem em sua atividade solitária. Já adentrava a porta para dentro do edifício, quando passou um carro na rua, com um som alto ligado. Era a mesma canção do homem.

Já dentro do ônibus eu pensava comigo: que fui eu naquela manhã de domingo para aquele homem? Talvez ele dissesse à noite para sua irmã: “hoje encontrei um jovem no parque”, e ela, com cara de não ouvia nada, entregava as pílulas de remédios na mão dele. Até podia imaginar ele dizendo: “parecia ser padre”. Ou pode ser que ele tenha esquecido totalmente de nossa conversa.

Que mistério havia desvendado? O homem de casaco e cabelo curto, o anônimo conhecido, já não tão anônimo assim? Talvez um anjo caído, tocando um teste na forma silenciosa, ambulante, de um homem velho. Dentro daquele mistério, outros mistérios.