COMO EXPLICAR ISSO?

Um amigo meu foi representante de produtos médicos durante muitos anos. É um profissional zeloso e pessoa incapaz de inventar histórias extraordinárias, dessas que não se explica pelos padrões de normalidade, principalmente para um cabra como eu que tem medo até de sombra quando ela se movimenta sem que eu esteja vendo o motivo.

Ele me contou que no final dos anos 70 ele representava uma empresa de São Paulo, fabricante de aparelhos médicos auxiliares no tratamento de problemas respiratórios. A grande novidade era o lançamento de ventilador pulmonar extremamente cômodo tanto para o médico como para as pessoas que precisassem ser entubadas.

Era verdadeira revolução de procedimento, vez que o paciente podia ficar sentado normalmente em vez de deitado em decúbito ventral e também por não necessitar de anestésico, apenas uma analgesia leve para evitar o desconforto durante a introdução do aparelho pelo nariz até a traqueia.

Num sábado de carnaval, esse meu colega estava em casa e recebeu a ligação do diretor da empresa, pedindo a ele que levasse o aparelho de demonstração para o médico amigo dele que estava de plantão no Hospital Português do Recife, para implantar numa vítima de queimadura, que estava na uti, necessitando de aumento significativo na pressão positiva.

Naquele tempo o hospital tinha a única entrada pela Avenida Portugal, aquela ruazinha estreita que começa na Rua do Paissandu e termina no portão de ferro gradeado que de tão grande está montado em rodízios para não arriar por conta do enorme peso.

O portão estava fechado, meu amigo buzinou, um porteiro sonolento veio atender e abriu o portão depois de ouvir a explicação daquela visita em hora tão avançada. Carro estacionado na rampa para entrada de ambulâncias, meu amigo bateu na porta da recepção que, pelo adiantado da hora, estava fechada.

Pouco tempo depois uma enfermeira mandou que ele esperasse no rol de entrada. Com passos miúdos desapareceu por trás da centenária escada de madeira que dá acesso ao primeiro andar.

Do lado direito de quem entra neste que foi o primeiro prédio do hospital construído nos anos mil e oitocentos, fica a capela com a porta estreita e de altura bem acima dos padrões atuais.

Em poucos instantes, surgiu o médico e meu amigo entregou o aparelho, fez uma rápida demonstração do uso e se dispôs a dar mais informações ou treinamento se necessário ao entregar o cartão de visitas.

Feitos os agradecimentos e despedidas, meu amigo pegou o carro e veio para a saída. Era outro vigia que admirado perguntou, - como foi que o senhor entrou? Não tinha mais nenhum carro no pátio e eu tranquei o portão com o cadeado para ir ao sanitário.

Meu amigo descreveu a pessoa que abriu o portão para ele e o vigia benzendo-se disse que era brincadeira dele, que ele devia ter entrado bem cedo.

Chegado em casa, novo telefonema do diretor da empresa, perguntando por que ele ainda não tinha entregue o ventilador pulmonar. Meu amigo esclareceu que tinha entregue ao médico com forte sotaque português, óculos de tartaruga e de cabelo ruivo, bem vermelhão. Disse também que o médico parecia palhaço de circo, pois seria completamente careca, se não fosse a faixa de cabelo na altura da nuca ligando as orelhas e um chumaço de cabelos no meio da testa larga, esvoaçante como antenas de baratas.

O fato é que o paciente morreu nessa noite e o ventilador pulmonar dentro da caixa aberta junto ao cartão de visitas, foi encontrado pela faxineira sobre um dos bancos da capela exatamente abaixo da fotografia do Dr. Medeiros Cintra, o ruivo, que foi um dos fundadores do hospital e usava óculos com aros de tartaruga por causa das grossas lentes corretoras da acentuada miopia.