Condominio Flamboyant - Ler para Curtir!
Condomínio Flamboyant
“Mesmo que estejamos
muito ocupados, devemos
sempre arranjar um tempinho
para fazer alguém se sentir
importante...” Renê Spitz
Quando fui escolher apartamento para comprar, conheci o belo Condomínio Flamboyant e adorei tudo. O local, o espaço-clube residencial, as imediações, a piscina, a quadra de esportes e as áreas verdes adjacentes, num cinturão de muitas árvores, parques, zonas de lazer e de recreação que confirmaram uma imagem de belezura nesse espaço geográfico do bairro do Campo Limpo, adjacente a Taboão da Serra.
As pessoas eram bonitas, simpáticas, atraentes, agradáveis, e, confesso, eu não entendi que me sentiria no futuro morando num zoológico. Mas isso foi só no começo. Mudei-me e começou a triste rotina. Acordo cedinho, encontro com pessoas residentes no elevador, no corredor, no amplo estacionamento e no hall da entrada central, mas, estranho, são todos surdo-mudos.
Esclareço. Quero dizer, não falam. Nem grunhem, imaginem só. Pelo menos acho que não. Cumprimento-as, alvissareiro, sempre inspirador e vibrante, com contentezas, mas elas estranhamente nunca ouvem, pois jamais respondem. Acho que na verdade nem têm curso de leitura labial.
No começo achei até que eram todas retardadas, débeis mentais mesmo. Depois, com o passar do tempo eu via bichos contidos nelas. Antas, raposas, mas, principalmente, não sei porque, Lontras.
-Bom Dia! Digo ao japonês na garagem aberta. Ele não responde. Deve ser surdo-mudo. Ou não tem cérebro, coitado. Ou não fala brasileirês. Quem sabe está fugindo da Máfia Yazuka ou coisa que o valha. Não posso continuar pagando esse mico?
Mas não acredito que sejam realmente todos assim, mal-educados. Tenho cursos, algumas posses, cargos públicos concursados, ganho até razoavelmente bem pra sobrevivência possível nesses hediondos tempos de amoral e inumano neoliberalismo globalizador, tenho um currículo até muito acima da média, no entanto, o principal de minha maior riqueza: tenho raiz, origem, família, pai e mãe, educação de berço. Sou educado naturalmente.
Cumprimento faxineiros, zeladores, porteiros (ah...esses respondem risonhos), mas os moradores nunca respondem a nada. Sequer captam os acenos presenciais. Parecem Lontras.
Ah, a Síndica é um amor. Educada, fina, ruiva e descendente de espanhóis, professora aposentada. Deveria dar um bom curso de Ética e Cidadania nas vivências-referenciais aos condôminos sarangas, tongos, de tromba. Mas os outros não são professores, claro. São Lontras. Não existe faculdade para lontras ainda. Nem céus e honras para Lontras. Não querendo ofender as Lontras, claro.
Os adultos são os mais surdos. Os de terno bem cortados, carro zero, jóias, gravata de seda, são os piores. Parecem todos estrangeiros. Parecem todos louros, europeus, nórdicos. Até mesmo as incríveis oxige-Nadas. Seriam extraterrestres querendo líderes nessa dimensão cósmica do limbo?.
A maioria dos jovens janotas e boçais nem olham na sua cara. Mesmo frente a frente no apertado do elevador, quando você os cumprimenta eles parecem aéreos, gárgulas vagando dimensões químicas absurdas. Dá vontade de soltar uma bela flatulência sonora. Já pensou?
As crianças não, graças a Deus. Passam por você, você cumprimenta por carinho e educação, elas com gracezas e prazeiranças respondem verdadeiras, ativas, doces, meigas, risonhas, finas e dignas com os olhos brilhantes, os gestos limpos, as palavras gostosas, mil estrelas nos rastilhos das correrias, em aventurosas buscas de serelepes que são e soam.
Às vezes eu me sinto num zoológico. Explico. Pior: em me sinto uma espécie em extinção. Sauro-rex. Entro num barzinho qualquer comprar fósforos, bom dia, por favor, obrigado, até manhã, fique com Deus!. Quando preciso tomar um ônibus Circular pra ir até Embu das Artes, até amanhã, obrigado, bom trabalho, gracias a la vida, hermanos. Quando entro no prédio aceno, cumprimento em voz alta e agradeço ao porteiro o carinho da atenção. Isso é normal pra mim. Faz parte de minha criação. É minha educação de família, é próprio do clã esse comportamento plural com ótima visão sócio-comunitária. Sou um humanista de resultados.
Não é a toa que o prédio todo está agora cheio de câmeras de segurança, alarmes, bips, controles, aparelhos com sinais, códigos de posturas, regras, normas, barras de aço. Sinais de pânico.
Eles precisam ser vigiados? Núcleos de abandonos.
Eles têm que ser vigiados!.
Não se respeitam, porque não respeitam os outros. Nem ao próximo como a si mesmo. Lembram dos santos Evangelhos? Até porque, é falta de educação (de berço, de origem, de conhecimento adquirido por evolução de meio matriz), essa postura inadequada, mas eles não sabem, não respondem aos formais cumprimentos de um vizinho, nem se tropeçarem neles.
Parecem que estão entre abóboras selvagens. Eles não sacam isso assim de mão beijada. Lontras nunca sabem. Precisam mesmo ser vigiados dia e noite, pagarem caro por isso. Com rótulos e códigos de barra. Com multas e prazos de validade. Seres limitados e bisonhos não têm peças de reposição.
Um dia, de repente, num século trinta qualquer, amanhece inteiro e pleno pra eles todos e, vá lá, enxergam o óbvio ululante. Assim, então, finalmente vão querer lidar com gente mesmo, parecer gente igualzinho, soar como uma pessoa, Ser, Humano!. Mas talvez venha a ser tarde demais, muito tarde.
Terão sido bichos do mato no íntimo, bichos urbanos nessa selva de pedra entre grifes e potes de vísceras, com as crias iguaizinhas ao derredor, prontas para a vaidade explícita, para o consumo, para as neuras, para os espezinhamentos de meios, para atitudes quizilentas, paras as fugas na violência e nas drogas, para as inflações que resultam das posses pífias, das posses ignóbeis em tempos de lucros injustos, riquezas impunes, propriedades-roubos, muito ouro e pouco pão.
E depois, justiça seja feita, verdade seja dita, a Arca de Noé só pode levar mesmo desses tempos tenebrosos, um só casal-cria com ótimo DNA espiritual do resto dessa medíocre espécie em extinção, os humanus sedentárius corinthianus.
Eles terão sido reprovados como Seres Humanos?.
Aliás, preocupado no meu empirismo sagrado de cada dia, estou reparando com muito medo que as crianças estão crescendo e perdendo a pureza, radares e esponjas que são, e estão prontas e preparadas para repetirem em erros e tempestades (Freud explica) as Lontras caseiras. Os jovens já posam bem de Lontras, com grilos de Lontras, grifes de Lontras, roupas de Lontras, atitudes de. E sons perfeitos de Lontras azedas, posudas em lodaçais improbos de um horrível som tecno-pop, credo, vade retro!.
Tenho medo de que, de uns tempos assim entrevado, convivendo em comum com Lontras posudas, de tanto estar entre elas, dar-me por acomodado e inconveniente - como ser social que sou como falou Kant - eu possa até mesmo de forma indireta e sem querer, adquirir algumas atitudes irracionais delas, dentro das fugas das formalidades e das boas maneiras, e então eu também aos poucos vire uma tola e pobre Lontra obesa, gorda e beiçuda. E acabe vaidoso e temperamental também, uma lontra com cara de pamonha azeda.
Tento desesperadamente evitar isso meu Deus, mas, minha mulher, coitada, cândida, simplória e naturalmente solícita e serviçal, já anda meio posuda, aqui e ali metida a sebo, vaidosa como ela só (sobreviver não é fácil) e logo, logo, vai parecer perfeitamente com uma, com estrias na alma e no coração, batons e pomadas. Benza-Deus!
Acho que esse é o segredo do Condomínio Flamboyant do Campo Limpo. Transformam, com as dobras do tempo e algum sentido terreal de alumbramento mágico (ou triste surrealismo fantástico), os seres humanos em Lontras, pois todos se acostumam, com o passar da rotina cotidiana caducam e se entregam, aceitam tranqüilamente tudo, se rendem paulatinamente, são cooptadas pelo usufruto de erros e nódoas, vão mesmo cair no redil com o mesmo jeito de ser e parecer disforme do real. Será imaginação minha? Ando tão distante de Itararé...
Tenho medo de um dia, meio kafkiano que seja, acordar barrigudo, todo cheio de pose, arrotando grandezas inócuas e até me descobrir uma Lontra com falso status quo e mudez de irrazão entre impropriedades. Com dezelo íntimo. Serei um nojo de-assim? Crendospadre! Será o impossível?
E, confesso, para mim o espelho não gosta de navalhas na carne. Eu quero ser, parecer e viver exatamente como eu sou, um Ser Humano na mais fidedigna expressão da palavra. Mas não é fácil. É muito difícil, diria aquele humorista cego. Tenho muito medo que, num futuro não muito distante, acabem mesmo transformando esse Condomínio Flamboyant numa espécie de zôo de sobreviventes de restos da espécie humana com o nome de Condomínio Neverland.
Tudo é possível. Então aí eu não poderei fazer mais nada. Ninguém poderá. E só restará um sonho de que um nosso herdeiro, ainda que meio “jegue júnior” especial que seja, fuja, fuja, pule fora, dê no pira, vá morar no mato entre preás, ipês e cotovias, ou que chegue um novo morador-dono com mais resistência ética, mais consciência cívica paisana, mais forte, bravo e disposto a lutar pelos direitos humanos dos que não querem nunca ser Lontras. Serão os sobreviventes de eras paranóicas de antes das lontras...
Então a luta continuará, a ração da esperança prevalecerá. O amor é a inteligência da vida, e, na verdade sabemos que é isso mesmo, afinal, muitos são chamados e poucos os escolhidos, apesar de, paradoxalmente também, Darwin dizer que a nossa linhagem ancestral é a origem de nossas paixões malignas e o demônio em forma de macaco é o nosso avô.
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Fim
Poeta Prof. Silas Corrêa Leite - De Itararé-SP
Texto da Série; Eram os Deuses Corinthianos?
E-mail: poesilas@terra.com.br
Site pessoal: www.itarare.com.br/silas.htm
Autor de CAMPO DE TRIGO COM CORVOS, Contos, Editora Design