Trapo
“Não aspiro a nada. Dói-me a vida. Estou mal onde estou e já mal onde penso em poder estar. ”
Bernardo Soares
Acordei com o dedo do sol cutucando meu rosto. As costas no muro, um mundo à frente e outro atrás de mim. Um pouco antes, uns homens de farda me pegaram e levaram para conversar, depois me liberaram porque eu não tinha nada para falar e não havia feito nada também.
Já fiz muita coisa no passado, hoje prefiro estar quieto, pensando. Às vezes, nem penso, prefiro panguar.
Nesta manhã de sol, encolho as pernas, grudo as costas no muro e observo a poeira da rua, o barulho dos carros e a curiosidade das pessoas. Parecem estar todos ao redor de mim como os cachos da Medusa ao redor dela.
Há muito a ser feito, mas não por mim. Recuso-me a qualquer outra coisa que não seja a apatia. Então, como se estivesse diante de um grande e barulhento auditório, berro aos quatro ventos que me deixem em paz na guerra comigo mesmo.
À noite é o melhor momento. É quando saio deste canto de muro e vou procurar o que os restaurantes jogam fora. Disputo com os cães e gatos. Por ser humano sou mais cruel que eles e consigo a melhor parte, não muito. Como pouco e evacuo o mínimo, também à noite, em terrenos baldios.
Os dias de chuva são terríveis, pois papelão não é telha e relâmpago não é flash. Nesses dias, tremo como um galho na tempestade, mas aprendi algo: o medo não me mata.
De madrugada vejo o mundo acordando para a guerra. Pois é isso que o mundo é: uma guerra infinita onde os heróis e os vilões são bem parecidos. Todos correm atrás da cenoura e quando alcançam, ela já murchou.
Outro dia passaram umas pessoas aí com um livro na mão e apontando para cima e para os lados uma direção para onde eu deveria seguir. Virei as costas para elas e tapei os ouvidos. Desconfio que essa gente que nos quer indicar um caminho está mais perdida do que eu. Quem vai pela cabeça dos outros é piolho, como já me disseram. Por isso aprendi a me camuflar, fico da cor da terra, sou terra enquanto eles pensam ser outras coisas.
Apesar de embaçados, meus olhos veem maravilhas como da vez em que vi uma luzinha pisca-piscando a um metro de mim. Era um vaga-lume, um anjo entre os insetos. Ele pousou no bico do meu tênis velho. Fiquei com o pé iluminado. Levei o dedo, ele subiu e o pus sobre a cabeça. Por um segundo me senti um santo. Foram segundos, mas bastaram. Dormi. Acordei no inferno.
Um barulho como de uma bomba explodindo em fogo e calor. Tentei correr, mas não tinha para onde ir. O muro tinha sido devorado pelo carro que desceu se arrasando ao meio e pelo meio dele. Naquela hora não havia ninguém na rua além de mim. E não havia mais muro onde me encostar. Pulei e sentindo o calor do incêndio me deparei com o impensável. Vi em agonia um corpo pegando fogo e não era o meu, mas se parecia comigo. Não pensei duas vezes, meti as mãos nas ferragens em brasa e arranquei a criança daquele purgatório. Corri com ela até o meio fio.
Logo chegaram os bombeiros e os curiosos. Tiraram os outros das ferragens, tiraram a criança de mim. Eu era a única testemunha, mas estava mudo. Me deram um copo com água e me levaram ao hospital também. Depois apareceram outros homens fazendo perguntas. Não respondi nada. Eles entenderam que eu não tinha o que dizer. E não tenho mais.
Fui atendido, medicado e enfaixado. Depois me liberaram, naquela manhã. Me deram o endereço de um albergue. Fui noutra direção. Fui em direção ao meu muro, que não estava mais de pé. Andei olhando as marcas do acontecido. Olhei tudo com mais tristeza ainda. No corpo o efeito da anestesia tinha passado. Tudo era dor. E a dor inflama. Fui esquentando, me esquentando e parti.
Do nada, entre a poeira do dia e os raios de sol, algumas lágrimas começaram a correr. E eu corri. Elas desciam e eu desci também em direção aos campos. Não sei até onde vou aguentar correr. Nem chorar. À minha frente não vejo muros, nem carros, somente árvores...