A VISITANTE
Ela passou a tarde inteira medindo meu coração, desfazendo pequenas criptografias.
A noite chegara lá fora.
– O que a senhora quer, afinal?, perguntei.
– Sair da rotina. Nada. Obrigado pelo café.
Foi à estante, olhou com desdém a profusão de livros. Uma parte insuspeita a atraiu: um trecho da estante onde eu guardava memorabilia, pequenos brinquedos, álbuns de figurinha. Tocou os brinquedos, sorriu ao manusear um boneco do Hulk. Puxou alguns álbuns. Apanhou o mais antigo, um álbum de cromos sobre dinossauros, da década de 60 do último século a morrer.
– O homem que pintou esses animais era um ser infeliz. Japonês de nome Agura Sayta, depois John Sayta, radicado em Cincinnati, nos EUA. Como você, praticava colecionismo: possuía escaravelhos. Escaravelhos embalsamados. Seu amor era a taxidermia, o reino de aço dos ínfimos e fortes insetos, mas ganhou a vida pintando dinossauros. Morreu de uma pneumonia. ...Segunda feira começa o verão em seu hemisfério... – ela concluiu, mudando completamente de assunto.
Já havia percebido esse padrão, esse alheamento. Se fosse cabível, diria que ela está esclerosada. Mas algo em mim insiste (intui) que ela sempre foi assim. O alheamento é parte de seu ofício.
– Quando você nasceu? – rompi a casquinha do nonsense com minha primeira pergunta de verdade. Ela nada respondeu: olhava pela janela, contemplando talvez as roseiras podadas do jardim.
– Você consegue estar em muitos lugares ao mesmo tempo. Como faz isso? Há muitas de você?
– Nascer não é a palavra. Nascer nem se aproxima da essência do conceito. Sou para o Universo como estas três paredes deste quarto de quatro. Sem elas não há quarto, não há morada: sou a coesão, a corrente de prata, o elo que liga o início deste Universo a seu fim, e seu fim será o meu. Mato para que um dia eu morra, enfim.
Puxou uma biografia de Einstein da estante. Fez menção de abrir o livro, declinou.
– A entropia que causa o caimento energético da matéria, entropia que a tudo corrói e mata e eu somos uma: o mesmo princípio, o mesmo... material criando formas diversas.
Era a minha vez de saltar de assuntos, pisar num detalhe que me perturbara desde que lhe abri a porta:
– Senhora, seus olhos são assustadoramente... impossivelmente melancólicos. Congelados num perpétuo estado de pré-lágrima. Eu os suporia duros, se tal imaginação tivesse tido seu tempo. É um detalhe ínfimo, mas que se mereceria espantoso. E o pior não é esse espanto, mas sua quase ausência... Pois é como se eu já tivesse visto esta cena e seus olhos. Você já esteve aqui? Em algum momento de que não me recordo?
– Se o Tempo é circular? Se você se sente girar, sim. Esse boneco sem braços... sim, lembrança de sua infância. O Tempo é uma explosão secundária ou de fundo, uma força-de-seguir-energias que, a partir do momento inicial, expandiu-se em todas as direções... mas não como o espaço, que vai sempre adiante, ou seguindo a placidez das linhas... o Tempo é inconcebível em linhas, elas avançam, entrechocam-se, ricocheteiam... Tempo, encantação domesticada, é a reificação mais mágica do Lumen, do Criador. Confuso? Ele não é para as palavras, como tanta coisa.
– Gostei daquilo que você escreveu – ela diz, noutro salto ou tombo demencial. E recita: “Vejo as pequenas mangas crescendo nos pés, a partir de setembro. Em dezembro estarão nas mesas e mãos. Um dia morrerei e as mangas, indiferentes, continuarão nascendo, crescendo açucaradas, sendo arrancadas ou caindo ao chão, diante de homens que não saberão de mim, seivas engordando uma outra manga, mesmerizados e indiferentes. Há um toque, um toque magistral de horror em todo esse processo de vida e morte.”
– Quer jogar xadrez?
– Para quê? Rainha-negra-mata-peões-mata-cavalos-mata-bispo-mata-torre-mata-rei-e-rainha-brancos. Partidários da rainha negra morrem. Rainha negra morre. Morte sempre vence.
– Ha-ha-ha... Perdão, senhora. Não quis dizer que poderia vencê-la, não imaginei o jogo sob esse prisma. Mas agora que a senhora referiu a isso... se fosse possível, como vencê-la?
– Sabe, certa feita um rei travestiu-se de peão e me venceu em meu próprio jogo. Mas tinha que ser, e o rei vestido em burla criara mesmo o tabuleiro-de-tudo em sua marcenaria. Era o mesmo que me criou, aos pés daquele Jardim onde teu pai foi criado e depois proscrito.
Mas vamos finalmente ao motivo deste dia. Você tem questionado e entristecido, mergulhado em café e aborrecimentos. Acredita, e com razão, na construção de sentido para a sua vida. Mas tem desesperado; já não pode mais construir, já atingiu a estação dos trens exaustos e ninguém lhe espera na estação.
Eu tenho uma oferta para você.
– Vai me levar? Só podia ser isso, afinal. E precisa desonrar-se ao propor a um peão o inescapável, o inacordável?
– No oceano, este oceano absurdo, cujo sentido verdadeiro, ou final se preferir, só pertence ao Um, você e, sei que inesperadamente eu também, sabemos que o maior tesouro é possuir sentido. É quase paradoxal, mas não temos escolha. Eu lhe ofereço o sentido sob minha jurisdição. Uma migalha bem maior que a sua.
Tudo de que uma criatura, qualquer criatura, precisa: um mapa e uma missão. O bernardo-eremita possui seus instintos, seu mapa, e sua missão é cumprir o ciclo; um demônio possui seu mapa de ódio, e uma agenda que se renova a cada homem que nasce, e como nascem homens!
Mas você, homenzinho amorável, desespera e pisoteia, em subidas e descidas, os andares do sobrado de sua própria angústia.
– E que tipo de sentido a senhora me oferece?
– O único que possuo, e como seria diferente? O meu.
– Não entendo.
– Mapa e missão, mapa e missão. É tudo de que toda criatura precisa. E sou feitura como você. Te darei minha missão e meu mapa. Não tema; não passará uma vida eterna sob meu manto; como missão, ela terá conclusão, e como mapa, há destino a alcançar.
– Calma, madame, calma aí. Quer que eu seja um... um tipo de seu ajudante?!? Um arauto, talvez?
– Quero que você seja eu.
Aturdido pelo insólito de tal diálogo, sentei-me no sofá. Afundei o rosto entre as mãos; chegara ao limite, tardiamente não conseguia conciliar os pensamentos. Escorri para o chão. Deitei-me, olhando fixo para o teto escurecido. Que tipo de pesadelo estava sendo aquele dia?
– E se eu aceitar sua oferta, que será de você?
– Abreviarei minha missão interior; acrescentarei ou expandirei sentido ao burlar o mapa; tomarei um atalho, e atalhos são raridades na metanarrativa universal.
– E, suponho, estarei para sempre prisioneiro de tua sina?
– Não, não para sempre, já lhe disse; meu mapa é delimitado em exatidões. Virá o dia, o Dia magnífico, em que o Equalizador terminará com a sua fome.
O sentimento de pesadelo ainda me dominava; a situação inteira não era crível, mas ao mesmo tempo a sensação de que jamais homem algum poderia ter sonho tão complexo e tão real como aquele era avassaladora. Eis o fantástico arrombando a portinhola de meu curral de tédio, eis a espada mística de Arthur ou Siegfried caindo do céu e enterrando-se no peito pálido de meu desconcerto. Que importa se sonho ou realidade?
– Aceito sua proposta.
– Oh. Finalmente. – disse, sentando-se. – Aquele que ulula entre terribilidade e misericórdia apiedou-se de mim. Pois há alguns séculos passei a clamar não no vazio, mas pelo nome de Seu Filho, o intermediário.
– ??? Oh. Fala de Deus?
– Toda fala fala de Deus, e não há escape, ó sucessor.
Ela se levantou e aproximou-se do local em que me deitara. Levantei-me, leso de quaisquer sentimentos. Ao abrir seu manto, pude divisar, mesmo na penumbra, o interior de seu sinistro corpo, ou fosse o que fosse. Era um entretecido de feixes, como raízes escurecidas, mas que me aparentaram sinalizar um belo mosaico, uma apetecível estrutura. Enfiou sua mão direita no próprio peito de urdiduras, que se abriram ao toque. De dentro de si retirou uma pedra. Ou joia. Tinha o tamanho de um punho fechado, talvez de um coração. Era translúcida; em seu interior, feixes de luz negra pulsavam em diversas direções.
– Este é o roteiro de missões. Aqui você verá cada alma a tocar, e quando fazê-lo.
– Como você pode tocar a tantos ao mesmo tempo? – repeti a pergunta inicial, noutros termos, tornando a um de seus nós metafísicos que me fascinavam.
– O Tempo, principezinho das cismas, é passível de dobraduras. Posso, e você, no começo não sem assombro, o fará, dobrá-lo para frente e para trás: ele sempre volta à posição normal, mas me permite estar em muitos lugares, em muitos tempos que, para os prisioneiros de sua falsa linearidade, parecem um tempo só.
Em seguida ela retirou seu manto. Inesperadamente, como se para deitar terror a um homem já além do medo – pois colapsado pelo absurdo –, a fraca luz de LED da sala tremulou. Vi seu corpo de feixes, de raízes entrelaçadas, sua nudez milenar. Ela estendeu-me sua mortalha.
– E se o Deus de que fala não me aceitar?
– Ele me permitiu escolher alguém. Não como fui escolhida, dentre a animália. Nem entre espíritos. Mas me permitiu escolher um dentre os de Adão. E eu escolhi você. E, se aconteceu, faz parte do sentido. O mais é contigo, e logo saberá.
Tomei seu manto. Deitei-o sobre meu corpo. Raízes começaram a cobrir minha pele; mas sentia também, em meu interior, seu avanço lento. A primeira sensação foi uma mudança no meu poder visual: podia ver a quilômetros de distância, estando dentro de minha casa.
– Agora irei lhe inserir a pedra. Doerá. Sim, doerá como o pecado de Adão.
Tocou-me com a pedra. No pouco tempo de reflexão entre suas palavras e sua ação de estender a joia, imaginei-a gélida. Mas era ardente, e incendiou meu ser, agora feito de urdiduras e entrelaces. Minha visão turvou-se, e como que, em poucos segundos, apaguei e despertei. E já era a Morte.
A pedra pulsava dentro de mim; sem que me desse conta ou plena consciência, desdobrei-me ou dobrei o que antes chamava de Tempo, voando célere em direção, perdão, nas muitas direções em que apontavam os feixes febris dentro da joia, acelerado por seu impulso. E, no entanto, eu permanecia ali. E era terrível, e era magnífico. Havia sentido, possuía a firme presciência de que havia missão e dela haveria um término; de que um dia aquele que alistara minha predecessora e agora me aceitava, iria finalizar meu propósito, e traria a equalização. Equalização, rosa para onde todas as coisas rumam, linhas de sua mão cosmocrática.
A minha predecessora, agora o borbulhar de um vulto amorfo, se arrastara em direção à porta; sem olhar para trás, abriu-a. Eu não encontrei palavras a proferir, inebriado de meu novo e vasto estado.
Ao ser alcançada pela luz do dia, ela transmutou-se em uma reles doninha. Então realmente não fora criada ex-nihili; fora uma doninha transfeita neste ser que a Queda, ou melhor, a provisória Ascensão do Absurdo, fez necessário existir. Isso explica ter sido possível o repasse do manto, um câmbio da máxima escuridão de as mãos do pó para as mãos do pó.
Lá fora, o pequeno mustelídeo corria e saltitava, provavelmente já insciente de seu passado impossível. Atingira a equalização, ou ao menos retornara à possibilidade de brevidade, cura para o pó. Equalização que se completaria quando a joia do Deus Equalizador em meu peito sinalizasse sua direção, para que eu colhesse minha predecessora.
A não ser que Ele o Deus Cosmocrator venha a me tocar antes, cerrando o voluptuoso túmulo do absurdo do qual me fiz porteiro. Ele de quem eu duvidava da existência, posso sentir agora, aterrado, sua presença e seu amor, tese da qual estou antítese, sentido por trás de todo sentido.