Sobre eles...
“Penso que essa música fala de uma suruba que deu errado, ele disse e continuou, na primeira parte, a letra diz sobre flutuar, corpos, salão, mãos que se perdem a iminência do toque, como se um casal tivesse ido para uma suruba. Aí, na segunda parte, diz sobre se perde no salão, outros corpos, como se o casal tivesse se perdido, ou o cara ficado com raiva, no meio da suruba, embora a mulher continue e ainda assim sinta meio que um lance lembrando do cara, no meio desse acontecimento todo”. Ela, que se encontrava na sala riu, aquele riso morno, complacente, demarcado objetivamente por uma educação, quase cortês.
Então ele, interrompeu a própria fala e começou a observar a sala, analisando os objetos, livros na estante, os quadros na parede (pessoas demasiadas sensíveis na parede), até mesmo os pequenos gatos, pequenas coisas vivas orgânicas, tateavam, aprendendo a caminhar. Pensou então sobre necessidades bobas, intrínseca ao ser humano, como dizer piadas sem graças ou compartilhar os ditos conhecimentos inúteis. Talvez, caso tivesse dito a mesma sentença que havia falado naquela sala, a poucos minutos atrás, para outras pessoas, até soaria engraçado ou mesmo digno de algo mais sincero.
O problema não era exatamente uma piada mal feita, o problema não dizia respeito a constante presença do silêncio (não completamente); a questão chave era aquela espécie de disponibilidade que deveria ser inerente as relações, aos afetos, romances, amantes e amizades, pressupunha. Ele acreditava nisso, na disponibilidade, esse alicerce que deveria tornar mais próximo do âmago até as baboseiras existências do outro, bem como o próprio outro, “porque nem tudo é eloquência e erudição, por Deus!”, falava para si.
E não conseguia, naqueles dias, compreender quando essa disponibilidade havia acabado. Em que momento fumar mil cigarros e beber coca quente parou de ser uma metáfora ruim, porém compatível aquelas vivências, e se transmutado em vazio, indiferença e indisponibilidade?
Ao decorrer daqueles anos, sobretudo, quando ele a conheceu, ou ele se aproximou dela, já que ambos apresentavam aquela ligação de árvore genealógica, da sexta série; eles desenvolveram um universo inteiro, pavimentando cada lugar comum com memórias, com filmes repetidos, livros trocados, poemas efusivos, danças esquisitas e, aqueles dias, em que apenas um descansar no ombro, ao fim do dia, resultava em algum alívio, ou como eles gostavam de parafrasear, “caso não nos matemos até a meia noite, então, está tudo ok, outro dia para suportar”.
E era suportável, não a relação entre eles (essa era afável, compreensiva, afetiva, talvez amor demais ou de menos), mas o modo como buscavam transcender aquelas banalidades, aquelas pessoas sempre a falar, aqueles dias um tanto escuros, nublados, indecisos quanto ao clima e o formato das nuvens. Era suportável o modo como eles escolhiam, naquele tempo, unirem-se, assim, para lidar com a vida, era isso que tornava viver suportável...
(...) porque, mesmo passar dias deitados na cama, aquelas crises constantes de humor, de “eu dei errado demais, amiga”, tanto dela como dele, acabavam em olhos cansados, não exatamente de lágrimas, lamúrias, mas de riso, pois, as 4 da manhã, assistindo sitcons antigas, no meio de todos aqueles dias pesados, o fato de, pelo menos conseguir, de algum modo, a convergência de seus mundos, trazia essa ideia de “suportável é o mundo, contigo”.
Só que isso de cativar ou ser cativado não é algo que traz garantias, é fantasia, é literatura, é ficção, então, na verdade, os sentimentos vastos não trazem garantias, pois desentoam em nós, evidenciando nossa própria capacidade de ir sendo e indo; e perdendo coisas pelo caminho, pessoas, abraços. A inevitável carência sempre à espreita...
(...) depois, o tempo, que a tudo transfigura, fadou-os a convivência.
Conviviam. Convivia com uma pessoa imersa em si mesma; porém, questionava-se se aquilo seria algum tipo de amizade, dúvida que deitava ao travesseiro e era jogada de volta a cabeça, com o som do despertador. E nisso, advinham longos silêncios, dias a fio na mesma sala, cada qual imerso em sua própria arrogância.
Perdiam-se, destoavam-se, negavam qualquer possibilidade de “olha, é que parece que a gente, sabe... uma distância...”, sentenças que terminavam com pedidos de tréguas. Tréguas que eram inferidas antes mesmo de uma possibilidade de “vamos conversar” ocorrer.
Quando não se escuta, quando se perde essa forma de olhar os olhos e dizer palavras, que mesmo magoando, possam chegar a resolver ou dissolver, existe uma certa desonestidade? Não sei.
Só que parece compreensível, por mais absurdo, esse desinteresse, esse “deixa que caminhemos por ruas inversas e o tempo passar e apagar ou sarar”. Além disso, também seria de um grande egoísmo (e não que ele não fosse egoísta, quem, não é? Quem não guarda para si algo que é incapaz de dividir, por puro prazer, às vezes) – E sim, seria de grande egoísmo pedir por disponibilidade, “me olha, me toca, eu estou aqui”, já que as pessoas não escutam quando gritamos, mas escutam, até no mais limiar, apenas o que sentem, e o que sentem determina o modo como observam, ouvem ou amam o outro.
E ele sabia, desde tão antes daqueles dias, que jamais receberei aquela ligação, em uma determinada tarde, junho, talvez, outono, depois de tanto tempo e as pequenas mortes. Contudo, ainda tencionava a procura de diálogos. Certa vez ela questionou “o que eu preciso fazer”; ele emudeceu, porque não entendia como ela não compreendia o que se encontrava tão visível.
Em algum ponto do caminho, alguém tinha se desvencilhado de alguém. Fosse ele, fosse ela, fossem ambos, não por amor demasiado ou escasso, não por traições e maldades emocionais, apenas por uma falta de disponibilidade, que, pensando melhor, entendeu que se tratava de um desinteresse mútuo.
Por mais racional que fosse, ele sabia os dias seguintes e as lamúrias, assim que batesse a porta da sala. Tinha uma consciência excessiva sobre as noites e dias e ausências e vontades e desejos. Sabia que não existia isso de perde, mas que igual tudo na vida, aconteceu e foi bom; esses sentimentos vastos por mais que perdurem as relações, acabam nos dando a sensação de efêmero, concluiu para si mesmo.
Ainda assim, mesmo entendendo sobre a possibilidade, cada dia mais iminente, da grande ausência, notou, lembrou, feito epifania indigesta, de um certo livro, de uma certa escritora, que dizia algo mais ou menos assim: sobre alguém ter perdido uma terceira pernas, embora tivesse consciência de que para se manter erguida no mundo necessitava apenas de duas.
Ele achou a metáfora interessantíssima, e falou: eu não sou um tripé.